Citações

"Escabroso, delirante e assustador! Perfeito!" Por Drauzio Marqezini em 12/04/2012 no site Recanto das Letras.

domingo, 31 de dezembro de 2017

Socializando




Ela precisava socializar, é o que todos diziam.
“Flávia, você fica no seu mundo e conversa com os outros apenas pela internet, precisa sair mais”
Sair mais, não ficar sozinha mais uma noite. O mundo é fugaz, não basta nossa própria companhia para todos.
“Você é tão bonita, devia aproveitar a vida”
E era bonita mesmo, não achava que desperdiçava a vida. Não gostava que os outros sequer pensassem nela.
O fato é que de tanto martelarem, de tanto falarem, de tanto encherem o saco e somando as malditas festas de fim de ano, conseguiram deixá-la deprimida.
Ajeitou seu cabelo curto e preto, botou o batom vermelho e saiu sem rumo.

Acabou parando no bar de um amigo de faculdade. O ambiente era patético, poucos solitários iam para a rua nas vésperas de festas.
- Todos com a família e os amigos.
Lhe respondeu o dono.
Foi aí que viu ele.
Ele parecia grande mesmo sentado no balcão, tinha um rosto mediano e uma bela barba. Os olhos eram a cereja do bolo, pousaram fixos nela.
“Eu espero que ele venha até aqui, nem a pau que vou lá”
Estava decidida, tomaria mais uma dose e se ele não fosse falar com ela iria embora.
Então ele sorriu pra ela, o choque foi tão grande que ela retribuiu com um “uh”!
“Espero que ele não tenha ouvido isso”
Já vinha em sua direção, ele cheirava bem.
- Está criando coragem para aparecer na festa?
A investida boba a fez corar.
- Não tenho festa pra ir.
Ele continuou com as frases tolas:
- Bonita assim e toda arrumada sem lugar pra ir? Qual é seu nome?
Não sabia se era o jeito ingênuo da chegada dele, ou o modo que olhava, daria uma chance:
- Flávia.
Ele passou a mão pela barba.
- Flávia, eu sou Ivan. Tenho um lugar para ir mas me falta companhia.
E estendeu a mão.
- Quer ir comigo? Não se preocupe, é aqui perto.
Ela fez uma cara de relutante.
- Lembrando que toda a rua é iluminada e tem várias pessoas perambulando indo para suas casas.
Ela riu.
Saíram juntos do bar.

A casa estava iluminada, havia pouco mais de uma dezena de pessoas ali. Flávia cruzou a porta e alguns conversaram entre si. Ninguém prestou a atenção nela e Ivan não a apresentou. O lugar fedia, justificado cheiro de festa.
De mãos dadas com Ivan não ligou. Tentaria socializar, haveria tempo para isso.
- Me diga o que você quer ouvir Flávia.
Ela pensou: Mas eu não conheço ninguém, e se não gostarem?
Ivan sorriu:
- Está na minha casa e vamos ouvir o que você quiser!
“Qualquer coisa que não seja pra baixo, afinal não estou sozinha, diga qualquer coisa menos Joy Division¹
E sua boca a traiu com o que queria de verdade:
- Joy Division.
O barbudo arregalou os olhos.
- Putz coloco com prazer, é uma das minhas bandas preferidas. Que coincidência.
E atravessou o grupo de pessoas para alcançar o som. Enquanto She's lost control invadia a sala ela permitiu balançar a cabeça e curtir de leve com as mãos.
Parecia que estava conseguindo.

O povo parecia não dar a mínima pra música. Para Ivan o que importava era Flávia, lhe trouxe uma taça de espumante devidamente gelado.
Então ele sentou ao seu lado, os outros convidados ficaram encarando, aquilo atraiu a atenção de todos.
- Você é um achado, sem sombra de dúvida.
Flávia pôde ouvir o cochicho do rapaz de camisa vermelha que estava próximo do sofá.
- Ele sempre diz isso...
Ivan chegava mais perto e já encostava a mão em sua perna.
- Flávia, Flávia. Parece que você é meu número, meu número da sorte.
E aí a magia se perdeu, ele veio como um carro desgovernado para cima dela. Avançando o sinal e adentrando sua boca.
Todos olhavam enquanto ela colocou as mãos no peito dele, tentando afastar o grandalhão.
“Ninguém vai me ajudar?”
De repente ele pareceu sentir as pequenas mãos e se afastou com o rosto perturbado.
- Desculpe, é que passo muito tempo sozinho e não sei como agir.
O rapaz de vermelho olhou para Flávia:
- Sempre a mesma desculpa, aff!
Ivan se levanta.
- Vou pegar mais alguma coisa pra bebermos.
E foi na cozinha, Flávia disse ao cara de vermelho:
- Depois desse atropelamento eu vou embora!
Atônito ele chegou mais perto dela:
- Você estava ouvindo o que eu disse!? Querida vai embora logo! Lucile!
Ele chamava uma negra muito bonita do outro lado da sala. Lucile foi até o som, parecia concentrada, após um toque a música parou.
Ivan gritou da cozinha:
- Desculpe, parece que a energia desta casa é uma bosta.
Quando o som voltou começou a tocar She's lost control novamente. E Ivan grita:
- Porra!
Flávia se sentia tonta, o homem de vermelho fala rapidamente:
- Ele vai mexer no rádio primeiro quando voltar, se você for embora logo, talvez não a alcance.
Apavorada pela urgência das palavras, Flávia tentou levantar mas suas pernas não responderam.
- Me ajudem!
Ela disse para todos na sala, os rostos consternados só observavam.
- Pobre coitada!  Acho que você não entendeu querida, estamos tentando ajudar como podemos.
E um momento depois Ivan já estava sobre ela, as mãos em seu pescoço invencíveis. Tudo se fechava naqueles segundos finais durante a violação e o estrangulamento. Flávia soltou um baixo pedido de socorro.
Em resposta, o rosto suado de Ivan:
- Estamos sós aqui, doze! Só nós!
Perdendo a vida, Flávia vê as pessoas da sala perdendo as formas.
Foi depositada embaixo do assoalho ao lado de um esqueleto com camisa vermelha.

Era o número onze.



Extras e referências:

1 - Joy Division, banda liderada por Ian Curtis, expoente do pós-punk com flertes ao gótico. She's lost control representa a cama de gato com a protagonista.



domingo, 10 de dezembro de 2017

Diga mamãe





                              “Opus destruit hominem”


Eu odeio o seu mundo.
Vocês adoram se sentar em suas salas, fechados em cubículos e maquinando contra todos. Claramente engordando a cada segundo com suas idas cada vez mais frequentes a restaurantes e aos fast food enquanto alguns de seus subordinados nem trazem algo pra almoçar.
Adoram quando eles entram no seu “salão sagrado” mendigando algo que pode ajuda-los e vocês podem olhar de cima, sentados em suas cadeiras confortáveis.
Raramente me perguntam sobre meu filho, raramente perguntam se estou bem.
Fingem que a empresa possui valores e preenchem um mural com sua questionável moral. Seu código de conduta é um disfarce para a livre delação e outras práticas detestáveis. Aqui se você pisa fora de um dos parâmetros é traído sem pestanejar.
Devo dizer, nos quase nove anos nessa divisão do purgatório me tornei mais falso, mais amoral e mais cruel do que alguém que não seguiu essa carreira. Quanto mais alto o escalão nessa máquina, mais distante dos outros seres ficamos.
Eu sei por que estou aqui.
Você iria apontar o dedo na minha cara e enfiar goela abaixo que minhas atitudes não condizem com a firma. Na verdade, eu quero falar e você vai ouvir tudo. Tire a mão do telefone! Nenhum segurança deste monte de merda fodida chegará a tempo de te salvar.

domingo, 19 de novembro de 2017

O clube do escorpião





 1 - Longe da vista do mundo


 - Vou contar pra você o que aconteceu...


 "Aqueles dois só queriam um dia de descanso, uma visita ao bar parecia uma boa idéia.
 E ninguém no mundo "normal" espera por um sequestro.
 Na saída do bar foram dominados e encapuzados. Jogados em um porta-malas.
 Por quê um sequestro?
 Fausto e Oscar.
 Amigos inseparáveis até mesmo no sofrimento.
 Foram retirados do porta-malas num paradeiro desconhecido. Retiraram tudo o que lhes seria útil.
 Removeram os capuzes, Fausto e Oscar fitaram uma escuridão tão infindável quanto fria.
 - O que vocês querem? Dinheiro?
 Perguntou Oscar para a escuridão, um dos indivíduos ocultos respondeu:
 - Se tudo der certo tiramos vocês daí.
 Foram empurrados, a queda foi grande. Ao atingir o solo Fausto quebrou o tornozelo esquerdo.
 Oscar feriu a testa.
 Estavam abandonados em um buraco de paredes concretadas lisas. Lá embaixo não havia comida, água ou cobertores.
 Grandes amigos feridos.
 - Nós vamos sair dessa.


 As horas passam, a agonia traz companhia da fome e da sede. Especulam sobre o resgate que seria solicitado, para quem?


 Fausto lembra-se do pai inválido num colchão sujo do asilo. O mesmo inválido que em seus tempos áureos costumava usar o cinto para ensinar lições.
 A mãe era muda sem possuir deficiência alguma, distante e ausente. Morreu sem causar estardalhaço, dormindo.
 Fora daquele buraco não possuía ninguém.


 Oscar lembra-se da rua, fugiu de casa com doze anos e não voltou. Contrariou estatísticas e ainda estava vivo.
 Saiu do grande vazio do seio familiar e buscou o vazio eterno da rua. Seria melhor que rostos estranhos o pudessem fazer mal, não toleraria mais que pessoas de sua família o fizessem trabalhar. Ou as visitas noturnas do seu tio.
 Fora daquele buraco não possuía ninguém.


 Se corroíam com as lembranças e o silêncio. Os pulmões cansados de gritar.


 Cai a noite, a estação traz a chuva.
 Abençoada chuva.
 Fausto e Oscar bebem água da chuva das paredes lisas. Preciosa chuva, aguentariam a sede por hora.
 A temperatura cai rapidamente.
 Maldita chuva.
 Encharcados, morrendo congelados. Esfregam os corpos para diminuir a sensação.


 O cheiro, um odor forte que sentiram desde que aterrissaram ali os enchia de horror.
 Era um cheiro de morte.
 Alguém havia morrido naquele lugar.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A propaganda





Era veiculado durante as madrugadas.
Da varanda de uma casa antiga de madeira um velho de chapéu olha para a câmera, olha pra você.

“Sim senhor, venha conhecer o pedaço. Temos em torno de 25 milhões de habitantes e baldes de ódio pra todo mundo.
Ó deserto imenso de paisagens tétricas, como a vida conseguiu perseverar aqui?
Ódio amigo, do mais puro!
Conhece a história das nações?
Manchadas de sangue, traições e crimes macabros. Nada se compara com isso aqui compadre, nada mesmo!
Odiamos brancos, que odeiam negros, que odeiam índios, que odeiam chineses.
A própria terra daqui nos odeia. Lembrem das grandes caravanas, da fome, das pragas. Aqui o escalpo já foi bem pago, quanto maior a quantidade melhor. Livre das amarras da sociedade no cenário desolado o estupro era impune, nativos tinham como único direito assegurado o de ter uma morte horrível.

sábado, 7 de outubro de 2017

Coceira



             “As palavras são a pintura e as mãos a moldura”


Eu sabia que você iria me chamar.
Fiquei lá esperando, perto daquele cara coberto de tatuagens infantis, perto do alucinado que diz ter se expandido e o cara que fez a Terceira Guerra Mundial na rua dele¹. Acho que sei até o que você pensou me chamando “vou falar com aquele farrapo humano pois ele me incomoda raspando a cara na parede”.
Quem sabe eu não paro com isso enquanto falo contigo, não é?
Tem partes da minha cabeça que o cabelo nem cresce mais.
Ahh... Me pergunta como isso começou, de novo?
A desconfiança, a perturbação, a coceira?
É preciso falar de Tania.
Eu tinha conhecido todas as drogas, todo o prazer que o mundo poderia me proporcionar. Ela se encaixou em mim pois me perturbava, me fazia olhar quando eu não queria, me fazia pensar nela enquanto comia. E nada me perturbava, parecia um instinto, um ato involuntário.
O que eu fazia?
Era um colecionador de livros, editor e crítico literário. Dei o mundo para ela, nos casamos rapidamente. Viajamos, visitamos os melhores restaurantes. Bon vivant.
Ela dizia que queria crescer e voltou a estudar em aulas particulares. Dizia que queria tratar sua mente como tabula rasa e na viagem a Bogotá teve um estalo “preciso aprender Matemática”. No retorno procuramos um bom professor da disciplina.
Quid pro quo, recebi o melhor sexo que ela podia oferecer no período. Depois de um tempo o professor de Matemática começou a me inquietar, só de lembrar dele minha barba coçava, saudades da minha barba.
Não ligue para as lágrimas, hoje aceito melhor a minha condição. É o que posso fazer, não é? O ato, o ferimento, a ação me diz que estou vivo.
O que eu fiz?
Disse a ela, perguntei se tinha algo com o professor. Completávamos quatro anos juntos e ela mentiu. Mentiu para quem conhecia seu cerne mais do que seus pais, para quem viu todas as suas fases e inconstâncias.
Olhou nos meus olhos e mentiu!

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Alva




      "O nosso maior medo é reconhecer como somos de verdade"


 - Que tal Alva?
 A escolha do nome foi difícil, não era um bebê que estava a caminho. Mas era de vital importância um nome de comum acordo ao casal.
 Irina ouviu a sugestão de Lúcio e concordou com a cabeça.
 Ele riu.
 - Será Alva então!
 E voltaram aos beijos.


 Irina e Lúcio eram amigos de longa data. Ela se casou e Lúcio seguiu quebrando a cabeça. A mãe dele sempre dizia:
 - Não arruma mulher casada! Lembra dos problemas que conseguiu.
 Se referia a um caso antigo de Lúcio, uma tal de Joana. Mas foi por infelicidade que bastou Irina casar para Lúcio descobrir que a amava.
 Os amigos se tornaram amantes, faziam de tudo para estar juntos. Secretamente sempre se encontravam e construíam planos.
 - Estaremos juntos de verdade logo.
 Irina queria se divorciar e ficar com Lúcio. Encontravam duas barreiras que atrapalhavam seus planos.
 Uma era o marido de Irina, outra a mãe de Lúcio. Queriam acertar as coisas de modo rápido.
 Estavam "namorando" por dois meses quando tiveram a ideia.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Ser como eles





 Do alto do prédio sede da empresa químico-farmacêutica¹ o homem olha.


 Os tons mudam da raiz ao topo, lá em cima o predominante cinza².
 Ele se serve da bebida na mesa e olha pela grande janela aberta do arranha-céu. Divaga com o copo na mão, olha transtornado para baixo.


 - Eu queria ser como eles.


 - Daqui de cima parecem minúsculas formigas operárias que trabalham para senhores como eu. Suas vidas possuem regras simples: colocar o pão na mesa, reunir pessoas queridas, diversões dentro dos limites monetários, amar.  Alheios a minha presença. Eles me olham nos jornais como notícia momentânea. Sou um assunto fraco nas conversas. Facilmente esquecido.


 Vai até a mesa e serve mais bebida. Volta a olhar o abismo.


 - Eu sou o desvio de caminho de suas vidas básicas. Com única decisão posso esmagar milhares de futuros, milhares de sonhos dos que estão lá embaixo. Crio crises em suas cadeias simples. Posso alimentar os males de toda uma geração. Poder com uma decisão.


 Ele sorri. O rosto rapidamente se contrai amargo.


 - Sobra somente a satisfação destrutiva para quem está no topo. Criamos corporações e empresas gigantescas, movemos a vida das formigas. Com o dinheiro-alimento, movem suas vidas transformando. Multiplicando-se. Enchendo as ruas e alavancando-me a prédios maiores. Fico cada vez mais alto, cada vez mais distante. Para me lembrar sempre que não sou como eles.


 Deposita o copo na mesa, vai novamente até a janela. Amargurado.


 - Contentam-se com pouco; abrem seus melhores sorrisos com beijos...


 Em tom mais alto:


 - Eu conheci o mundo inteiro! Eles se importam com a viagem que fizeram ao parente de outra cidade, tenho dinheiro para forrar minha casa! Eles só querem que sobre o suficiente para pagar as contas.


 Coloca as mãos nos bolsos, olha triste o vazio.


 - Riem; aproveitam a curta vida. Interagem expondo minha fragilidade. Eu sou um homem poderoso.


 Retira um cigarro do bolso e o coloca na boca. Faz menção de acendê-lo com o isqueiro. Joga o cigarro pela janela. Apoia a mão na beirada.


 - O abismo é aqui; não lá embaixo. As esperanças acabam quando se está tão alto. O solo é a segurança, ele te faz lembrar que você pertence a algo.


 Ele chora leve.


 - Vidas notáveis. Pessoas que eu adoraria conhecer, sujeitos que se unem por causas. Quando nascemos a vida nos invade com cheiros, com sons, com visões para nos ajudar a compreender seu propósito. Isso não se pode perder durante o tempo, quanto mais distanciamos menos vivemos. O abismo de cada um deles é onde estou. É onde a humanidade acaba.


 Joga o maço de cigarros lá embaixo.


 - Meus amigos de fachada são como eu. As pessoas somente se aproximam de alguém nesta posição quando querem algo.


 O vento açoita os cabelos.


 - Ela me abriu os olhos quando foi embora. Foi viver como eles e ainda sinto o calor de seu beijo de despedida. Disse que eu estava cada vez mais frio. Já se passaram dez anos e o calor do beijo permanece em meus lábios.


 Toca os lábios relembrando.


 - Já é tarde demais para mim, a distância é grande demais. Há quanto tempo não sinto o amor verdadeiro de alguém? Há quanto tempo não se importam verdadeiramente comigo? Há quanto tempo não me importo com alguém?


 Toca a beirada novamente.


 - É tarde. Não tenho tempo para encurtar a distância aos poucos, quero tudo ou nada! Eu queria ser como eles...


 Chora.


 - Devo alcançá-los, abraçá-los.


 Desajeitado sobe ao parapeito.


 - Abraçá-los. Devo alcançá-los, me misturar a eles.


 O homem salta.

 Mistura-se a multidão pasma, as sirenes tocam.







"Conto muito foda! É triste, é intenso, é real!"
Carla Garcia, professora, comentário postado em 15/06/2009.


Extras e referências:

1 - Xemox, complexo químico inspirada em uma fábrica que joga uma nuvem pútrida em uma cidade do interior de SP. A Xemox assombra vários contos do autor, exemplos: O único, Quando a esmola é demais.

2 - Novamente a cor cinza retrata algum sentimento negativo assim como em A maquete.



terça-feira, 29 de agosto de 2017

Destoante



"Por vezes o sentido da vida é a insanidade"


 1 - Reunião babaca


 Reuniam-se toda sexta-feira, era um grupo de leitura e discussões sobre poesia.
 Quem presidia as sessões era um tal de Plínio.
 Plínio era professor de português dos mais quadrados, era praticamente a figura geométrica. Chato era apelido.
 Os outros integrantes da reunião pouco diferiam dele.
 Lucas e Tatiane: um casal de poetas medíocres, um crítico certa vez os chamou de casal calmante, devido ao teor sonífero de suas poesias monótonas e sem sal.
 Otoniel: amante da poesia "dor-nos-córneos", separado há anos, ainda amava a adúltera ex-esposa. Detestava qualquer conotação sexual em poemas.
 Dona Vera: viúva que mantinha o Dona, lutava com o câncer e repudiava poesias macabras e sinistras. Temia imensamente a morte.


 O Plínio nem dava aulas na sexta, apenas para estar com seus amigos em chatice. O grupo lia e relia poetas que não cheiravam, nem fediam.
 Se alguma pessoa citasse Augusto dos Anjos era taxado de mórbido por eles. Se citassem Vinícius, era uma página central de revista de nus para seus ouvidos, julgado pornográfico pelo grupo. E o Bocage?
 Bocage era promíscuo.
 Ginsberg?
 Nem queriam saber de Ginsberg.
 Numa sexta-feira comum estavam em sua "sede", a casa de Plinio, quando alguém bateu na porta. Plínio foi atender.
 - Quem será?
 Era uma jovem linda¹. Estava sobriamente vestida de preto. Plinio pensou:
 "Deve ter errado o endereço, ou deve estar vendendo algo."
 - Aqui é a reunião de amantes da poesia?
 Plínio respondeu.
 - Sim... o que deseja?
 A jovem disse firme:
 - Participar.
 Plínio já ia fechando a porta, a moça continuou ali.
 - Desculpe é um grupo fechado. Passar bem...
 A moça colocou o pé na porta, bem no vão.
 - Tratam a poesia como algo restrito?
 Quatro pares de olhos estavam em cima das costas de Plínio. Esperando pela resposta que ele daria. Ele pensou e disse:
 - Não mocinha... É que, é que nem sabemos o seu nome.
 A linda moça respondeu:
 - Saibam somente que sou uma apreciadora de boa poesia. Também faço meus versos.
 Os olhos de todos brilharam até os de Plínio, afinal, faziam meses que só liam e reliam poesias antigas. Leram até a obra completa de Lucas e Tatiane. Mesmo assim o quadrado disse:
 - Desculpe mocinha.
 Os quatro atrás responderam:
 - Não; espera!
 Plínio ficou sem ação, Otoniel segurou seu braço e cochichou em seu ouvido:
 - Se ela for ruim a chutamos...
 A moça impaciente:
 - E então?
 Plínio à contragosto:
 - Está bem. Entre.
 E a deixaram entrar naquela reunião babaca.

domingo, 20 de agosto de 2017

Férias atrasadas





 Estava com vontade de usar a tesoura. Quando a retirou da caixa, o homem amarrado à mesa começou a gritar novamente.
 Parecia ter uma resistência enorme naqueles pulmões.
 Ele introduziu as lâminas da tesoura nas narinas do homem e fechou.
 O jato de sangue atingiu sua mão direita em satisfação breve.
 Frederico precisava de férias¹.

 Para sair daquela rotina de cortes e ferimentos imaginou uma bela praia. Camarões fritos, cerveja gelada e uma brisa de fim de tarde. Crianças fazendo castelos de areia. Sorrisos presentes em rostos de todas as idades. E, infelizmente, sempre temos de voltar.

 O sangue invadia os olhos do homem na mesa. Frederico limpou com uma toalha o excesso, era preciso que ele visse o que acontecia. Sem a conexão não haveria sentido em nada daquilo. Retirou uma gilete da caixa, com uma das mãos segurou o pênis do homem e foi lhe abrindo a uretra. O trabalho ficou difícil com o vermelho que espirrava. O homem desmaiou, típico.

 Outro lugar bom para as férias seria o campo. Tardes de temperatura agradável. Conversas na varanda e ótima comida.
 Pães de queijo e café com leite, bolo de fubá e requeijão. Dias que pareciam mais longos.

sábado, 5 de agosto de 2017

Todo mundo comeu





                "Desconfiaremos primeiramente dos tímidos"


 1 - Ritinha

 Ritinha já estava desaparecida desde segunda. Onde foi parar aquela do riso inesquecível?
 É o que se perguntava o pai, Seu Aristides estava desconsolado, admirava a beleza da filha profundamente.
 - Perdi ano passado a Mirtes. E agora isso.
 E chorava como carpideira adiantada.
 - Com quem ela costumava sair?
 A pergunta do policial era simples para Aristides.
 - A melhor amiga os senhores já ouviram.
 O policial com o pescoço rígido foi incisivo.
 - Não. Ela tinha algum namorado, algum paquera?
 O pai não sabia responder sem denegrir, afinal aqueles policiais eram meros estranhos, achariam que a filha era uma perdida. Sem saberem o quanto Ritinha era doce, amuado ele nada falou.


 Frase de um banheiro da faculdade:
 "Ritinha doce vagabunda, todo mundo já comeu!"



 Se o pai soubesse mais da vida universitária da filha, teria morrido mais cedo.

sábado, 29 de julho de 2017

As chaves certas




 Eu¹ estou nesta casa a muito tempo.

 Apenas seguindo esta vida estranha.

 Abro a porta com cuidado, deixo o lixo ou faço qualquer coisa rapidamente.

 A saída sempre é assegurada antes, verifico seu estranho mundo durante um longo tempo pelo meu amigo, o olho mágico.

 Sua sujeira, suas monstruosidades, tem de ficar fora.

 Porta; barreira, muro que me mantêm pouco mais protegido.

 Para quem ou o quê invadir guardo a arma, dependendo do que entrar não será de muita valia.

 Eles, o acaso, os lixeiros, os médicos falhos, assassinos apoiados na escuridão, os canais fora do ar que nos induzem, criaturas rastejando no escuro, trabalhos que nos matam na rotina, filas que apodrecem nossos espíritos, contas que nos encarceram no processo, estão todos nos rodeando, conheço cada centímetro da minha casa².

 Ponto.

 Sempre que estou pensando questiono o porquê de se escrever, olhando as paredes de minha prisão aceita questiono muito.

 Que serve de terapia todo mundo sabe, quem já fez algum tratamento mental conhece isso, eu descobri algo importante há algum tempo.

 Você nunca está sozinho realmente sabia? Se o humano se comunica de várias formas mesmo com sua fragilidade assustadora, o que dizer de coisas incrivelmente profanas e más?

  este texto agora perguntando-se: onde ele quer chegar?

 Meus contatos rareiam, é verdade. Sou taxado de insano por me esconder no lugar que me é mais seguro.

 Textos, contos, mensagens escondem mais significados que aparentam em seu âmago.

 Vírgula.

 Eles, que escreviam coisas sinistras antes de mim entendiam esta simetria macabra, os que ainda escrevem partilham de minha dor enquanto em sua ignorância o resto do mundo sorri.

 Sorriem pois desconhecem a totalidade deste absurdo, eu tive alguns sonhos ruins em que vislumbrei este caos, por estes sonhos eles falaram comigo, os medos falaram comigo e me deram grande incumbência.

 Acima de qualquer terapia e de qualquer vocação, os homens sempre seguem as ordens de seus medos.

 De toda agonia que você pode imaginar confrontar seu maior medo é ápice.

 Seus temores lhe visitam quando está sozinho, quando está sozinha? Ora, eu já disse... nós nunca estamos sozinhos realmente, eu tenho suas chaves... as chaves certas.

 Ombros curvados em direção desta página não te fizeram entender? Por vezes dizemos tudo o que queremos pelas primeiras palavras de nossos períodos.

 HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ









Última página do diário de Allan Miller³.



"Você fez alusão a nomes como Poe, Lovecraft e até Jamie Delano encontrou as chaves e sabe usá-las muito bem."
Jefferson Ravazzi, colecionador irmão.


Extras e referências:

1 - "Eu apenas abro sua porta para eles. Sempre que você lê meus textos, eles sorriem acima de seus ombros." As primeiras palavras dos períodos indicam uma mensagem de Miller sobre sua real intenção.

2 - Aqui Miller faz referência a vários contos de Barone: Peculiaridades, Horda, O maior espetáculo da Terra, Rasteja no escuro, Fim do expediente, A espera. Trechos a frente Miller presta homenagem a grandes escritores perturbados.

3 - Allan Miller, o nome junta dois gênios das HQs (Alan Moore e Frank Miller), psiquiatra e escritor de Horror recluso, Miller sofre de Agorafobia e durante anos trabalhou com os piores casos do Hospício Santa Clara. Um de seus livros mais famosos é Penumbra e cenas mórbidas.




domingo, 23 de julho de 2017

O maior espetáculo da Terra



   "O demônio tem outros nomes conhecidos, nomes humanos"


 1 - Pacto de circo


 Sua vida como hipnotizador estava um marasmo só, sim, existiam os famosos. Ele era somente uma atração do circo.
 Então se achava um fracassado.
 Até a mulher barbada tinha mais prestígio que o pobre Nero¹. Já via o dia que nem o dono do circo poderia aguentar seu desempenho medíocre.
 As pessoas não ficavam totalmente sob sua influência. Imagine que certa vez, a casa estava cheia e o Nero chamou alguém da plateia:
 - Quer participar do número?
 A menina olhou em volta e disse:
 - Tudo bem.
 E o Nero começou a hipnotizá-la. Certa hora gritou:
 - Você caíra em sono profundo agora!
 A menina visivelmente em alerta respondeu:
 - Quando? Agora?
 A gargalhada foi geral. Haviam aqueles que se perguntavam se aquilo era um número de comédia.
 Foi uma total humilhação. Dadas estas circunstâncias resolveu fazer um pacto com o diabo.
 Só não sabia como.
 Um dia terminou seu número, mais um fracasso, quando viu na saída um homem que lhe fez sinal e disse:
 - Você me chamou.
 Ele sabia que era o diabo, confie em mim, se você o olhar saberá que é ele.
 O diabo perguntou:
 - O que você deseja?
 Assustado Nero respondeu:
 - Quero ser famoso com a hipnose.
 O cramulhão:
 - Só isso?
 E o parvo:
 - Só.
 O demo deu uma tossida longa e fez que sim com a cabeça. Então Nero perguntou:
 - Qual é o preço? Minha alma?
 O diabo:
 - Também. Mas eu quero mais, eu quero almas inocentes.
 Nero pensou.
 "Pior do que está não pode ficar".
 E concordou.
 O diabo lhe soprou a testa e sumiu. E tudo mudou.

sábado, 15 de julho de 2017

Faixa 16




 1 – Ruptura¹


 - Eu não vou concordar nunca com essa merda!
 Segurava a foto da próxima capa incrédulo. Ela mostrava dois golfinhos nadando com uma moça de biquíni.
 Fred Fracasso não se conformava. Rud falou:
 - É mudança musical Fred. Aceita velho...
 Há algum tempo percebia que somente ele ainda andava com a jaqueta de couro surrada, os tênis detonados.
 Todos estavam diferentes.
 Cabelos lambidos da moda, detestável moda. Fred ainda era creditado com seu codinome. Mas era uma questão de tempo para que os patrões mudassem tudo.
 E a última coisa a ser mudada seria ele.
 Parecia um Sid Vicious num Coldplay.
 Uma roda e moshs num show da Enya.
 Ou seja...
 Ele era um peixe fora d'água. E desde quando aquele aquário deixou de ser seu?
 Agora ele estava ali com dois alienígenas que lembravam seus amigos.
 Onde estavam os piercings na cara de Dani Desastre? Onde estava o cabelo espetado e bizarro de Rud Ruína? Onde estavam as olheiras e os olhares vidrados dos dois?
 Fred mantinha suas olheiras e seu olhar vidrado, injetado ali.
 - Parece que nem o nome da banda se aplica mais a vocês, seus traíras!
 Fred saiu da sala. Dani o encontrou fora do prédio. Estava sentado num banco fumando um charuto vagabundo.
 A olhou com desprezo:
 - Se veio me convencer pode ir embora!
 Ela parou na frente dele:
 - Cresça Fred. Não dá para você pensar alto? Porra, não dá pra ganhar dinheiro de verdade daquele jeito.
 Ele arregalou os olhos:
 - Dani Desastre você está aí? Você disse porra. Bandas melosas não dizem porra! Eu sei que debaixo destas roupinhas da moda está uma baixista cabulosa.
 - As vezes você faz jus ao teu nome. Fred, faz isso por nós?
 - Dani... eu não faço música diluída.
 Ela sentou ao seu lado.
 - Fred, eu tenho uma filha agora. Não posso mais viver como uma porra-louca.
 - Dani.  Vocês colocaram golfinhos na capa. Golfinhos!
 Ela dá um tapa no ombro dele.
 - Para! Essa jogada vai dar certo, vai criar polêmica. É uma mudança radical cara. Eu e o Rud queremos muito isso. Até as composições estão prontas.
 - Aquelas merdas que eu ouvi na sala são as novas músicas? Eu nem participei de nada.
 Ela grita.
 - O senhor? O senhor estava com o nariz entupido. Com o braço recheado de agulhas! Não está nem aí pra nós Fred!
 Fala mais baixo.
 - Eu e o Rud fizemos até a parte das guitarras.
 - Isso está na cara. Não tinha nem um pouco de peso, nem uma sombra de distorção.
 - Nós sabíamos que não ia ser fácil com você.
 Fred traga o charuto, solta a fumaça e responde.
 - E eu sabia que este contrato com gravadora grande ia fazer isso com a gente.
 Dani segura a mão de Fred.
 - Você é nosso amigo, queremos você conosco.
 - Ou?
 - Evoluímos, aprendemos até o seu instrumento. Você entendeu, não é?
 Com o rosto em fúria.
 - Estão me chutando?
 Ela se levanta.
 - Pensa bem Fred.
 E vai embora, Fred grita.
 - Estão me chutando da banda que eu fundei!?


 A raiva habitual invadiu os sentidos e inundou o corpo. Era o que o impulsionava.
 Surgiu em uma infância tão ruim quanto o inferno e se apegou a ele. Depois de um tempo ela precisou que ele a despejasse, a descarregasse.
 A adolescência e a música. A mistura volátil que lhe foi entregue com amigos tão revoltados quanto ele.
 A banda, os codinomes e toda vertente de autodestruição possível.
 Anos de abusos e perigos. Brigas, confusões e agressões. A raiva precisa de alimento para existir.


 Dani quase morreu com uma overdose cinco anos atrás. Rud perdeu alguns dentes.
 E a raiva vai mudando de alvo, de direção.
 Raiva por ver outros amigos do mundo caótico morrendo.
 Por acabar com todo o dinheiro ganho comprando coisas que lhe faziam mal. Que roubavam sua energia.
 Dois anos atrás Dani recusou-se a dormir com ele novamente. Fred estranhou, viviam livres, sem obrigações com ninguém.
 Dani respondeu que estava apaixonada por Rud.
 E Fred sentiu raiva.
 Ela havia parado com a diversão, depois que ficou com Rud. O que Fred não percebia é que para seus amigos não havia mais diversão.
 Só sequelas.
 Para completar o quadro ela teve uma filha.
 E Fred sentiu raiva por se importar com isso. O contrato da gravadora chegou em meio ao caos da banda. Eles tinham vários fãs no submundo da música. Lotavam os shows.
 Mas os lugares para tocar escasseavam, os fãs transbordavam de raiva e quebravam os estabelecimentos.
 Os cachês mal pagavam os estragos.
 Ficaram famosos por isso.
 Uma gravadora grande cresceu os olhos, achou que a banda conseguiria o estrelato em mídias maiores.
 Assinaram o contrato.
 Com o dinheiro do adiantamento para produzir um novo disco, Rud e Dani procuraram outras sonoridades.
 E Fred se encheu de drogas.


 Meia hora depois entrou na sala de reuniões novamente. Todos esperavam uma reação explosiva.
 E ficaram surpresos com o que ele disse.
 - Tá bem! Eu quero fazer uma faixa para o disco.
 Rud e Dani olharam para o figurão da gravadora. O chefão se pronunciou:
 - Certo. Poderá ser um bônus: faixa 16.
 Fred olhou para baixo escondendo seu olhar de ódio.
 - E depois saio da banda.
 Ninguém manifestou única objeção. Saiu rápido da sala.
 Entre os dois integrantes restantes e o chefão ficou tudo acertado.
 - Será bom... um petisco para seus antigos fãs.

domingo, 2 de julho de 2017

Singular



“Ocasião que torna infiéis os prometidos”


 - Agora ela deu pra achar que eu vou abandoná-la. Você acredita?
 Omar encheu a mão de salgadinhos e respondeu.
 - Grávidas são assim mesmo. Elas ficam mais sensíveis e o escambau, o que você diz de forma simples vira a terceira guerra mundial.
 Leandro coçou o queixo.
 - Então você passou por isso quando a Amélia estava grávida?
 - Ô, ela achava que eu ia embora com a vizinha que só tinha dois dentes!
 Riram, Leandro olhava para a paisagem repetitiva. A vida estava nos eixos, emprego estável, filho a caminho, acabando a faculdade. Sempre quis ser pai, quando receberam o resultado do exame abriu um sorrisão.
 Tinha certeza que não iria deixá-la¹.

 A viagem de ônibus continuava. Omar empolgado, queria conversar sobre algo que lera.
 - Quem escapou disse que as luzes se apagam, ainda fico com isso na cabeça, é como uma bateria sem carga.
 Leandro concordou com a cabeça, Omar prosseguiu.
 - Outros disseram enxergar uma luz distante em um breu, um farol moribundo.
 A metáfora de Omar o levou a pensar em Tereza, sua mulher foi o farol de sua vida turbulenta.

 Três horas da manhã.
 Um ruído era o sinal nas trevas do quarto, Tereza estava chorando, ele a abraçou forte.
 - Estou aqui, está tudo bem.
 As lágrimas escorriam pelo rosto e molhavam o peito de Leandro.
 - Com o que sonhou linda?
 Ela comprimiu-se nos braços dele, não respondeu de imediato. Ele a conhecia como a palma da mão e lhe deu tempo.
 - Sabia que ia me deixar, foi embora com uma loira bonita! Eu não sou bonita.
 Ela chorava baixinho.
 - Eu não vou te deixar, já tenho tudo o que eu quero do mundo.
 A apertou, tocando o barrigão.

 - Estou falando sozinho aqui meu?
 Leandro voltou a si.
 - Desculpe Omar.
 - Ainda pensando na Tereza né? Você ama ela cara, não entre na paranoia. Lembre-se do que eu disse: grávidas são sensíveis.
 - Eu... eu não, eu nunca pensei em trai-la sabe? Como foi que ela colocou isso na cabeça?
 - Leandro, não precisa me convencer. Sei que nem pensa em fazer cachorrada com a Tereza. A sua mulher só teve um pesadelo! É só um pesadelo cara! Não alimente a ideia que não faz bem pra nenhum dos dois. Mudamos de assunto; eu acho que trabalhamos muito longe meu velho.
 Leandro sorriu, Omar podia ter razão. Tentar apagar um incêndio com jornais não daria certo, retomou a conversa.
 - Continue o assunto de que falava antes.
 Omar aprovou com brilho nos olhos.
 - Sobre o filme mental. Nossas melhores cenas em um compilado pessoal especial. Melhor que Copolla, Scorcese ou qualquer grande diretor². Nossas maiores conquistas, desejos, decepções, saudades e amores. Sempre achei esta ideia mais elegante. O que acha?
 - Gosto mais de outra ideia.
 - Qual?
 Leandro não respondeu, diante dele uma loira bonita procurava um lugar para sentar. Vinha sorrindo e era como a descrição de Tereza.

terça-feira, 20 de junho de 2017

Amor em notas




1 - Conta o poeta


 O pessoal se reunia na praça para ouvir o poeta declamar suas poesias. Estranhamente ele diz a todos:
 - Hoje não recitarei minhas poesias. Mas contarei uma estória que é a pura poesia.
 E começou a contar.
 " Havia um casal perfeito formado na cidade, uma união de alquimia pura. Ela era uma poetisa de renome. Ele um multi-instrumentista premiado. Conheceram-se em um encontro de belas artes e nunca mais se largaram.
 Já se amavam antes de se conhecer pessoalmente, ela escrevia suas poesias escutando os discos que ele fizera. Ele lia as poesias dela e realizava composições.
 Tudo estava destinado.
 O casamento aconteceu pouco depois do primeiro beijo. Sentiam que pertenciam ao outro. A alegria dos dois transbordava e a festa foi luxuosa.
 Foram morar numa casa enorme e bela. Com um jardim imenso e quartos para a música e a poesia.
 Durante essa época lançaram suas mais conhecidas obras. E com o devido sucesso eles melhoraram ainda mais sua situação financeira.
 Difícil ver pessoas mais felizes que Rosa e Proteus. Tinham alguns empregados na vasta casa, arrumadeiras, mordomo e até um jardineiro.
 E o tempo passou, logo completaram cinco anos de casamento. Proteus tinha uma surpresa para Rosa.
 Após todos saírem, os convidados do aniversário e empregados, Proteus pegou seu violino.
 - Essa é tua música Rosa...
 E tocou a composição mais bela do mundo, a poetisa pôs-se a bailar. Seus olhos marejavam em felicidade. Nunca havia ouvido algo tão bonito, tão forte e ao mesmo tempo tão sentimental.
 - É linda Proteus. É a música mais linda que já ouvi.
 Proteus chorou após a execução, enxugou as lágrimas e disse.
 - Chama-se Réquiem para Rosa¹, um réquiem para a vida, enquanto essa música existir você será imortal nas notas.
 Beijaram-se fortemente.
 Da janela alguém observava o casal e de forma suja... cobriu as plantas do jardim com "amor solitário"."

domingo, 11 de junho de 2017

Dívida






1 - Era hora de dormir


 Na hora do sono, Daniel colocava duas cobertas por cima do corpo fizesse calor ou frio. Estava com sete anos, orfão de mãe e abandonado pelo pai, morava com o tio.
 O nome do tio era Wagner.
 Bons tratos e carinho fizeram que amasse o tio.
 E na hora de dormir, todas as noites, Wagner contava uma estória para Daniel.


 O garoto tinha um gosto estranho.
 Gostava das estórias de um assassino que sempre fugia da polícia.
 O assassino se chamava "Confessor"¹, costumava cortar as orelhas das vítimas. E a cada noite Wagner contava um capítulo da violenta saga do maníaco.


 O tio entrou no quarto e recebeu a pergunta:
 - Vai contar como continua a estória tio?
 Wagner sorriu.
 - Lógico Dan. Onde eu tinha parado ontem?
 O garoto piscou e começou a falar:
 - O Confessor tinha matado a madame Dória e estava saindo da casa dela.
 Wagner respondeu.
 - Certo.
 E prosseguiu a narrativa.


 "Após ter matado Dória porque achava que ela não o escutava, o Confessor retirou as orelhas da madame e saiu da casa.
 Chovia terrivelmente. No meio da rua ele dava passos lentos.
 Levantou uma das orelhas de Dória até a boca e começou a falar:
 - Está me ouvindo agora? Está me ouvindo sua miserável!?
 Estava passando pela ponte do rio coletor. Foi quando um carro desgovernado o acertou em cheio.
 Com a pancada ele foi jogado no rio.
 Pensou que iria morrer, não sabia nadar.
 Pensou que era melhor morrer que ser preso, então dois braços o puxaram para fora da água. Um homem vestido de branco o salvou.
 Recomposto do susto com a boca sangrando disse ao homem de branco.
 - Estou em dívida com você...
 O homem de branco disse que não se preocupasse, afinal, era um enfermeiro e realizava socorros todo tempo. O Confessor estendeu até o enfermeiro um cartão com um número de telefone.
 Ao realizar o movimento para pegar o cartão o enfermeiro o deixou cair, no chão viu assustado uma orelha. Perguntou ao Confessor:
 -Você feriu a orelha?
 Notou que o Confessor tinha as orelhas intactas.
 Olhou frio para o homem de branco.
 - Estou em dívida com você enfermeiro.
 E foi embora.
 O enfermeiro assustado olhou um tempo o cartão e..."

domingo, 7 de maio de 2017

O que eu quero





Não é comum que perguntem.
As pessoas hoje, cada vez mais engolidas pelos celulares, pela rede, não te olham nos olhos e perguntam o que você quer.
O que eu queria era uma vida idílica, idealizada e cálida pois não levava desaforo pra casa.
Um trabalho que não me destruísse física e espiritualmente, amigos que estariam lá para o que desse e viesse.
Um enlatado americano.
Quando percebi que estava beirando os trinta, que meu trabalho era um saco e que meus amigos tinham suas próprias e indispensáveis vidas, eu aceitei.
Eu queria planejar uma família como quando escrevia minhas listas de supermercado.
Recebi uma gravidez inesperada e caótica, senti dores que nunca senti e jamais fiquei tão incomodada.
Mas ela nasceu perfeita com um temperamento vivaz e único.
Me apago.
Queria que ela fosse para a melhor faculdade, tivesse amigos leais e nunca perdesse aquele sorriso que era seu maior trunfo.
Nove meses de sofrimento, apenas seis anos fora da minha barriga e ela adoeceu.
Eu queria o melhor tratamento, médicos competentes, bons e baratos remédios.
Ganhei um plantão lotado de domingo e um diagnóstico errado.

domingo, 23 de abril de 2017

Devolva




"Emprestar é um prazer, devolver é um dever."


 1 - O amanhecer doentio


 Acordou de manhã e tomou seu café magro: pão com manteiga e chá. Foi até o quarto e apanhou o que procurava.
 Não era a primeira vez que faria isso. Deu uma olhada em seu caderno de anotações e limpou suas armas.
 A viagem seria longa e só poderia ser feita após seu trabalho.
 Saiu então para trabalhar, era funcionário dos correios.
 O dia passou em meio ao turbilhão de pessoas que lotava os guichês. Saiu do trabalho aliviado pois agora iria atrás de sua vingança.
 Assoviava um hino de sua nova igreja.


 Rubens estava sem um puto no bolso, quem diria.
 Após uma vida cheia de mimos se tornou um garoto de programa.
 O pior era encarar aquelas velhas carcomidas e aqueles homens nojentos. Vivia então neste ritmo monótono de luxúria.
 Mas esta noite era diferente.
 Rubens estava parado em seu ponto quando viu aquele homem estranho se aproximar de uma casa. O homem carregava uma mala.
 "Deve ser turista, só pode."
 Aquele homem foi se aproximando e lhe perguntou:
 - Você conhece o Renê? Fiquei sabendo que ele morava por aqui.
 O garoto de programa conhecia o Renê, afinal era o maior viciado daquelas bandas. Diziam que o Renê devia até a alma aos traficantes.
 - Conheço sim. Ele mora ali ó!
 E apontou para mostrar a casa. O homem olhou Rubens e disse:
 - Renê tem algo que é meu. Você sabe se ele está em casa?
 Rubens respondeu:
 - Não sei não, ele vive por aí procurando droga...
 O homem começou a andar em direção da casa de Renê, no meio do caminho se virou e disse ao Rubens:
 - Sai dessa vida garoto.
 E lhe deu as costas, Rubens lhe mostrou o dedo médio.
 "Que otário!"
 Viu então o homem bater palmas em frente da casa. Era em torno de onze e quinze.
 Rubens deixou o cigarro nas mãos interessado na cena.
 Renê saiu chapado para atender.
 - Quem é?
 O homem disse:
 - Não lembra de mim Renê?
 Renê coçou os olhos:
 - Não lembro não. Se não te devo... cai fora!
 Ia fechar a porta mas o homem falou gravemente:
 - Me deve sim, vim buscar minha Laura!
 Renê ouviu aquilo espantado:
 - Cara, é você mesmo? Quantos anos que não te vejo, quer entrar?
 O homem respondeu:
 - Só quero a Laura. E uma reparação.
 O chapado lhe disse:
 - Tu vem até minha casa a esta hora procurando isso? Você tá me zoando meu?
 O homem riu:
 - Sabia que não seria fácil. Eu sabia e esperava que não fosse pois isso torna o que vou fazer certo.
 Rubens viu então o brilho da doze, cano cerrado. O homem apontou para Renê e atirou.
 O primeiro tiro destruiu os genitais e parte das coxas.
 - Ahhhhhhhhhrrrrgggghhh!!!
 Os gritos invadiram a rua. O homem levou o indicador à boca e disse a Rubens:
 - Shhhhhh!
 Disse calmamente.
 - Onde está Laura?
 Chorando e sangrando muito Renê apontou o interior da casa. O homem pulou Renê no chão e entrou.
 Gritou dentro da casa:
 - Onde?
 Renê gritou a resposta:
 - Na estante porra! Tu me matou. Tu arregaçou meu pau por causa de uma merda dessa...
 O homem saiu da casa com uma caixa pequena nas mãos.
 - É minha reparação Renê. Meu Senhor, a vingança é minha!
 E atirou na cabeça do drogado. A massa cerebral fez parte do quintal. O homem foi embora calmamente assoviando.
 Rubens estava chocado.
 Só depois percebeu que o cigarro queimava seus dedos.
 A polícia não deu muita atenção ao caso pois Renê era um viciadinho.
 De manhã Rubens saiu de casa para procurar um emprego... num amanhecer doentio.