“Opus destruit hominem”
Eu odeio o seu mundo.
Vocês adoram se sentar em suas salas, fechados em cubículos e maquinando contra todos. Claramente engordando a cada segundo com suas idas cada vez mais frequentes a restaurantes e aos fast food enquanto alguns de seus subordinados nem trazem algo pra almoçar.
Adoram quando eles entram no seu “salão sagrado” mendigando algo que pode ajuda-los e vocês podem olhar de cima, sentados em suas cadeiras confortáveis.
Raramente me perguntam sobre meu filho, raramente perguntam se estou bem.
Fingem que a empresa possui valores e preenchem um mural com sua questionável moral. Seu código de conduta é um disfarce para a livre delação e outras práticas detestáveis. Aqui se você pisa fora de um dos parâmetros é traído sem pestanejar.
Devo dizer, nos quase nove anos nessa divisão do purgatório me tornei mais falso, mais amoral e mais cruel do que alguém que não seguiu essa carreira. Quanto mais alto o escalão nessa máquina, mais distante dos outros seres ficamos.
Eu sei por que estou aqui.
Você iria apontar o dedo na minha cara e enfiar goela abaixo que minhas atitudes não condizem com a firma. Na verdade, eu quero falar e você vai ouvir tudo. Tire a mão do telefone! Nenhum segurança deste monte de merda fodida chegará a tempo de te salvar.
Eles também foram moldados por esse maldito lugar, se eles virem algum problema grave costumam olhar para o outro lado calmamente. Quando entrei na sua sala eu tranquei a porta, ninguém vai nos incomodar querida.
Não se preocupe chefe, não tomarei muito de seu precioso tempo. Você deve estar se perguntando o que aconteceu com aquele cordeiro pacífico que era imolado aqui todo santo dia.
Meses atrás eu tive um colapso.
Stress, doença causada pelo trabalho, principalmente o trabalho corporativo. Não conseguia mais olhar as caras dos filhos da puta sob minha alçada. Os mesmos desgraçados que diziam me adorar e cagavam nos resultados sempre que podiam. Tatuei uma frase enorme na minha barriga para me lembrar que esse trabalho é venenoso. Quando expliquei o significado da tatuagem para um de seus asseclas enxeridos recebi a seguinte resposta “não concordo, o trabalho dignifica o homem”.
Engraçado que a pessoa que disse tamanha asneira é uma líder das mais odiadas. Ela detesta todos os seus subordinados e se acha superior por causa de sua odiosa crença. Ainda bem que foi minha barriga que recebeu as agulhas, ainda bem que os olhos daquela megera queimaram quando ela viu.
Irônico que foi justamente na crença que encontrei alívio.
Sem laços, sem remorso.
Parece um grupo de aconselhamento né? E realmente é isso para mim.
Confesso que ao ouvir aquele fanático de olhos esbugalhados pela primeira vez achei graça. Mas em poucos minutos aquilo, isso, fez sentido.
Me tornei uma pessoa pior do que era quando cruzei pela primeira vez estes portões. Fazia sentido então ser outra pessoa.
Cirurgia plástica, não.
Reeducação alimentar, não.
Férias num spa, não.
Uma mudança mental.
Se você gritar eu tiro o que está no meu bolso e decoro sua sala.
Sabe que sou inteligente e que te odeio por me rebaixar a você. Alguém que só sabe ler índices, gráficos e a porra dos cardápios. Que só se preocupa com objetivos atingidos e caga na cabeça dos seus empregados na frente de seus superiores.
Você é um produto clássico deste universo. Você é podre como um cadáver de duas semanas.
Lembra quando ajudei seu filho com a matéria para uma prova, pediu minha ajuda sendo minha chefe e me insultou pois não ofereceu nada em troca.
Diga mamãe, quem eu sou hoje?
Um maluco de cabelos verdes que se diverte batendo em crianças com um pé de cabra¹?
Um psiquiatra que gosta de comer pedaços de pessoas inconvenientes²?
Um estudante que transforma seus amigos em alvos de arco e flecha num ambiente confinado³?
Alguém capaz de mentir todos os dias dizendo que ama trabalhar aqui e não acredita em nada disso. Que seria capaz de planejar um grande atentado com o maior número de vítimas. Alguém com o passado sujo, criminoso, que ficou oculto pois vocês não se importam com as pessoas.
Você, vocês, não me conhecem.
E agora eu não me conheço, nesta manhã rompi com minha esposa e com meu filho.
Rompi comigo.
Diga mamãe, quem sou eu?
Não sei, não tenho laços ou remorso.
Sei o que vou fazer contigo hoje e amanhã deixarei de acordo com meu humor.
Nero está certo. Eu posso ser quem eu quiser todo dia.
É a suprema liberdade!
Ao menos as conversas fiadas aqui nesses anos vão servir para algumas coisas.
Eu sei onde você mora.
Eu sei onde seu filho estuda.
Eu sei o trajeto de seu marido para casa. Mas não se preocupe com o destino deles, ele já foi selado antes de eu vir pra cá.
Por isso estimada chefe peço desculpas pelo meu atraso.
Diga mamãe, não foi engenhoso?
Pode começar a gritar agora.
Publicado no site Recanto das Letras em 03/06/2017.
Extras e referências:
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* O conto narra alguns ritos da seita Sem Laços, Sem Remorso. Seita fundada por Nero Caruso após os eventos de O maior espetáculo da Terra.
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