"Desconfiaremos primeiramente dos tímidos"
1 - Ritinha
Ritinha já estava
desaparecida desde segunda. Onde foi parar aquela do riso inesquecível?
É o que se perguntava
o pai, Seu Aristides estava desconsolado, admirava a beleza da filha
profundamente.
- Perdi ano passado a
Mirtes. E agora isso.
E chorava como
carpideira adiantada.
- Com quem ela
costumava sair?
A pergunta do
policial era simples para Aristides.
- A melhor amiga os senhores
já ouviram.
O policial com o
pescoço rígido foi incisivo.
- Não. Ela tinha
algum namorado, algum paquera?
O pai não sabia
responder sem denegrir, afinal aqueles policiais eram meros estranhos, achariam
que a filha era uma perdida. Sem saberem o quanto Ritinha era doce, amuado ele
nada falou.
Frase de um banheiro
da faculdade:
"Ritinha doce
vagabunda, todo mundo já comeu!"
Se o pai soubesse
mais da vida universitária da filha, teria morrido mais cedo.
2 - Popularidade como
leviandade
Onde passasse atraia
olhares e sabia disso.
Só fazia medicina por
achar que o avental era de sensualidade imensa. E ter calores de tesão por
médicos.
A loira era linda, o
nariz bem feito, doce, os seios fartos, as coxas grossas. Um dia beijava um e no
seguinte estava com outro.
Maior fama que sua
beleza, somente sua vida sexual.
Perdeu a virgindade
com treze, isso porque já sabia exigir o uso da camisinha bem antes. Agora, com
vinte e um...
Era imortalizada como
Cicciolina¹. Diziam que topava orgias e sexo de várias maneiras mas estranho
dizer que sua popularidade só aumentava com sua leviandade.
Afinal, ela era doce.
E promovia amizades:
- Você conhece a
Ritinha?
- Grande Ritinha,
monumento na cama.
- Você também já!?
- Ô se já. Somos
sortudos.
- Um cara que já
traçou a Ritinha deve ser legal.
E era imortal.
Até aparecer o Beto.
3 - Assassino míope
Depois do
desaparecimento de Ritinha completar uma semana e pouco aconteceu o que ninguém
esperava.
Era uma tarde de
calor infernal, baratas saiam dos bueiros para atazanar os homens.
Ele também saiu da
toca.
Caminhou pela rua de
modo patético pois era patético.
A delegacia atulhada
de suspeitos e policiais parou para olhar para ele.
Suava e chorava tanto
que embaçou os óculos.
Um policial se
adiantou:
- O que você quer
filho? Algum desgraçado te bateu?
O policial o encarava
mas ele não retribuiu o olhar. O fardado ficou impaciente:
- Fala homem de Deus!
Ele retirou os óculos
e os limpou na camisa branca. Soltou entre os lábios.
- Eu matei ela...
A frase saiu como um
murmúrio.
- O que você disse?
O policial não
conseguia entender, talvez pelo som que a frase ganhou. Talvez porque não
conseguia imaginar aquele franzino matando alguém.
O sangue voltou para
a cara do magrelo que gritou:
- Eu matei a
vagabunda da Ritinha.
Desatou a chorar
novamente:
- Eu amava ela.
Os policiais o
cercaram como moscas em carne estragada. Após pouco tempo ele disse que
mostraria o corpo.
4 - Beto
Se timidez tivesse
nome de gente, chamaria Beto.
Roberto nunca teve
amizades ou amores na infância.
Minto. Amizade só
uma, do Caio. Amor só um: o conhecimento.
Cresceu lutando
consigo mesmo. Ir para a escola, enfrentar o mundo era difícil para ele, quase
impossível.
Chegou na faculdade e
ainda era virgem, Caio permanecia como único amigo, faziam faculdade juntos.
Na verdade Caio era
um aproveitador, um parasita que sempre pedia que o Beto fizesse seus
trabalhos. E com conselhos naturalmente óbvios:
- Você tem que viver
Beto, encontre algo e viva. Beba, trepe, beije!
E Beto conclusivo:
- Sou um pouco
tímido.
Mentia para si mesmo.
Era um tímido grotesco e quando viu Ritinha pela primeira vez, quase morreu de
emoção e êxtase.
Caio sabia como
Ritinha era e tentou adiantar o amigo. Ritinha se mostrou interessada.
Respondeu ao Caio maliciosa:
- Nunca tracei um
virgem.
E se jogou em cima do
Beto. Eis que fatalmente aconteceu.
- Estou apaixonado
Caio. Encontrei o que precisava na vida.
Caio o cortou.
- Peraí Beto! Abre o
olho. A Ritinha é boa e tudo mas todo mundo já comeu ela cara.
Não acreditava no que
ouvia e engatou um "romance" com Ritinha. Esta só aceitou a situação
porque ele podia fazer seus trabalhos.
Ele confessava na
intimidade:
- Sou ciumento
Ritinha. Você é linda demais.
Ritinha sorria
levemente. Doce.
Um dia ela o
perguntou:
- Você faz algo que
realmente gosta quando não está comigo?
Respondeu
timidamente:
- Minhas únicas
distrações são os livros e minha fazenda de formigas.
Ela riu sarcástica:
- Mas isso é
patético!
Envergonhado ajeitou
os óculos sem olhar nos olhos da deusa.
- Não, é legal. As
formigas tem vidas de muito trabalho.
Nesse dia perdeu a
vontade de ver suas formigas.
Nascia um começo de
ódio velado por Ritinha.
5 - Monstro²
Beto levou os
policiais até a cabana de propriedade de sua família. Os primeiros que entraram
saíam vomitando e os que depois entraram idem.
Recobrando-se do
espasmo estomacal o investigador levantou uma pesada marreta que trouxe de
dentro da cabana.
E perguntou ao
assassino míope:
- O que em nome de
Deus você fez à aquela jovem na cama!?
Beto limpou os óculos
na camisa branca e revelou.
"Caio me dizia
pra esquecer ela, mas eu não consegui. Um dia peguei os dois cochichando e ouvi
tudo. Ela não fez amor comigo a primeira vez porque gostava de mim, fez porque
nunca havia feito com um virgem. Ainda assim eu gostava dela.
Passou um tempo e ela
não fazia questão de esconder seus outros amantes. Aceitei calado mas meu ódio
cresceu.
Disposto a acabar com
tudo eu a trouxe aqui. Joguei tudo em cima dela. Perguntei se ela me traía com
fulanos e sicranos.
E ela docemente fria,
disse que era verdade e que não eram somente os fulanos e sicranos... Haviam
também os beltranos!
Então a puta riu,
muito doce, veio em minha direção e me mordeu a boca. Sussurrou:
- Teu mal é que me
ama!
Nunca fizemos amor
como desta última vez.
Exaurida estava
deitada de bruços, nua. Perguntei como quem não quer nada se o que ela achava
de minha fazenda de formigas era verdade. Ela bocejou:
- Lógico, é patético!
Vi a marreta no chão,
meu pai usava para fincar cercas.
Pensei alto, disse
que quando era pequeno o Caio sempre falava que fazenda de formigas era
patético e que eu não sabia o que os dois tinham contra a pobre da fazenda.
Asquerosamente ela
respondeu a minha divagação:
- O Caio? Essa
opinião é minha, se ele pensa igual... Aquele lá fala tanto e trepa tão mal...
Fiquei cego de raiva
perante a revelação, a marreta se apoderou de mim como um apêndice nas mãos.
Com uma marretada certeira acertei suas costas. Eu sabia o que fazia, estudo
medicina.
Ela paralisada do
pescoço para baixo murmurou xingamentos enquanto eu ficava ali, com dificuldade
ela perguntou o que eu iria fazer.
Fui até a cozinha
buscar algo.
Na pequena cozinha
peguei o pote e despejei em minha doce Ritinha todo o açúcar.
E como era doce.
Outra marretada foi
dada. Desta vez em minha fazenda de formigas, joguei milhares delas em cima de
Ritinha.
Sendo comida por
tantas bocas, por tantos!
A última coisa que me
lembro antes de sair da cabana era o ciúme que eu sentia daquelas formigas que
se deliciavam com minha doce Ritinha. Ciúme."
"Meu Caro, a sua narrativa é fantástica, pausada, envolvente, uma delícia de se ler."
José Cláudio Cacá, escritor do site Recanto das Letras em comentário de 29/04/2009.
Extras e referências:
1 -
2 - Lembrando um encontro entre os pesadelos urbanos Nelson Rodrigues e o horror dos contos policiais, Todo mundo comeu surgiu na comparação da vida de Beto com o trabalho mudo das formigas.
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