Citações

"Escabroso, delirante e assustador! Perfeito!" Por Drauzio Marqezini em 12/04/2012 no site Recanto das Letras.

sábado, 5 de agosto de 2017

Todo mundo comeu





                "Desconfiaremos primeiramente dos tímidos"


 1 - Ritinha

 Ritinha já estava desaparecida desde segunda. Onde foi parar aquela do riso inesquecível?
 É o que se perguntava o pai, Seu Aristides estava desconsolado, admirava a beleza da filha profundamente.
 - Perdi ano passado a Mirtes. E agora isso.
 E chorava como carpideira adiantada.
 - Com quem ela costumava sair?
 A pergunta do policial era simples para Aristides.
 - A melhor amiga os senhores já ouviram.
 O policial com o pescoço rígido foi incisivo.
 - Não. Ela tinha algum namorado, algum paquera?
 O pai não sabia responder sem denegrir, afinal aqueles policiais eram meros estranhos, achariam que a filha era uma perdida. Sem saberem o quanto Ritinha era doce, amuado ele nada falou.


 Frase de um banheiro da faculdade:
 "Ritinha doce vagabunda, todo mundo já comeu!"



 Se o pai soubesse mais da vida universitária da filha, teria morrido mais cedo.




 2 - Popularidade como leviandade


 Onde passasse atraia olhares e sabia disso.
 Só fazia medicina por achar que o avental era de sensualidade imensa. E ter calores de tesão por médicos.
 A loira era linda, o nariz bem feito, doce, os seios fartos, as coxas grossas. Um dia beijava um e no seguinte estava com outro.
 Maior fama que sua beleza, somente sua vida sexual.
 Perdeu a virgindade com treze, isso porque já sabia exigir o uso da camisinha bem antes. Agora, com vinte e um...
 Era imortalizada como Cicciolina¹. Diziam que topava orgias e sexo de várias maneiras mas estranho dizer que sua popularidade só aumentava com sua leviandade.
 Afinal, ela era doce.
 E promovia amizades:
 - Você conhece a Ritinha?
 - Grande Ritinha, monumento na cama.
 - Você também já!?
 - Ô se já. Somos sortudos.
 - Um cara que já traçou a Ritinha deve ser legal.
 E era imortal.
 Até aparecer o Beto.


 3 - Assassino míope


 Depois do desaparecimento de Ritinha completar uma semana e pouco aconteceu o que ninguém esperava.
 Era uma tarde de calor infernal, baratas saiam dos bueiros para atazanar os homens.
 Ele também saiu da toca.
 Caminhou pela rua de modo patético pois era patético.
 A delegacia atulhada de suspeitos e policiais parou para olhar para ele.
 Suava e chorava tanto que embaçou os óculos.
 Um policial se adiantou:
 - O que você quer filho? Algum desgraçado te bateu?
 O policial o encarava mas ele não retribuiu o olhar. O fardado ficou impaciente:
 - Fala homem de Deus!
 Ele retirou os óculos e os limpou na camisa branca. Soltou entre os lábios.
 - Eu matei ela...
 A frase saiu como um murmúrio.
 - O que você disse?
 O policial não conseguia entender, talvez pelo som que a frase ganhou. Talvez porque não conseguia imaginar aquele franzino matando alguém.
 O sangue voltou para a cara do magrelo que gritou:
 - Eu matei a vagabunda da Ritinha.
 Desatou a chorar novamente:
 - Eu amava ela.
 Os policiais o cercaram como moscas em carne estragada. Após pouco tempo ele disse que mostraria o corpo.


 4 - Beto


 Se timidez tivesse nome de gente, chamaria Beto.
 Roberto nunca teve amizades ou amores na infância.
 Minto. Amizade só uma, do Caio. Amor só um: o conhecimento.
 Cresceu lutando consigo mesmo. Ir para a escola, enfrentar o mundo era difícil para ele, quase impossível.
 Chegou na faculdade e ainda era virgem, Caio permanecia como único amigo, faziam faculdade juntos.
 Na verdade Caio era um aproveitador, um parasita que sempre pedia que o Beto fizesse seus trabalhos. E com conselhos naturalmente óbvios:
 - Você tem que viver Beto, encontre algo e viva. Beba, trepe, beije!
 E Beto conclusivo:
 - Sou um pouco tímido.
 Mentia para si mesmo. Era um tímido grotesco e quando viu Ritinha pela primeira vez, quase morreu de emoção e êxtase.
 Caio sabia como Ritinha era e tentou adiantar o amigo. Ritinha se mostrou interessada. Respondeu ao Caio maliciosa:
 - Nunca tracei um virgem.
 E se jogou em cima do Beto. Eis que fatalmente aconteceu.
 - Estou apaixonado Caio. Encontrei o que precisava na vida.
 Caio o cortou.
 - Peraí Beto! Abre o olho. A Ritinha é boa e tudo mas todo mundo já comeu ela cara.
 Não acreditava no que ouvia e engatou um "romance" com Ritinha. Esta só aceitou a situação porque ele podia fazer seus trabalhos.
 Ele confessava na intimidade:
 - Sou ciumento Ritinha. Você é linda demais.
 Ritinha sorria levemente. Doce.

 Um dia ela o perguntou:
 - Você faz algo que realmente gosta quando não está comigo?
 Respondeu timidamente:
 - Minhas únicas distrações são os livros e minha fazenda de formigas.
 Ela riu sarcástica:
 - Mas isso é patético!
 Envergonhado ajeitou os óculos sem olhar nos olhos da deusa.
 - Não, é legal. As formigas tem vidas de muito trabalho.
 Nesse dia perdeu a vontade de ver suas formigas.
 Nascia um começo de ódio velado por Ritinha.


 5 - Monstro²


 Beto levou os policiais até a cabana de propriedade de sua família. Os primeiros que entraram saíam vomitando e os que depois entraram idem.
 Recobrando-se do espasmo estomacal o investigador levantou uma pesada marreta que trouxe de dentro da cabana.
 E perguntou ao assassino míope:
 - O que em nome de Deus você fez à aquela jovem na cama!?
 Beto limpou os óculos na camisa branca e revelou.

 "Caio me dizia pra esquecer ela, mas eu não consegui. Um dia peguei os dois cochichando e ouvi tudo. Ela não fez amor comigo a primeira vez porque gostava de mim, fez porque nunca havia feito com um virgem. Ainda assim eu gostava dela.
 Passou um tempo e ela não fazia questão de esconder seus outros amantes. Aceitei calado mas meu ódio cresceu.
 Disposto a acabar com tudo eu a trouxe aqui. Joguei tudo em cima dela. Perguntei se ela me traía com fulanos e sicranos.
 E ela docemente fria, disse que era verdade e que não eram somente os fulanos e sicranos... Haviam também os beltranos!
 Então a puta riu, muito doce, veio em minha direção e me mordeu a boca. Sussurrou:
 - Teu mal é que me ama!
 Nunca fizemos amor como desta última vez.
 Exaurida estava deitada de bruços, nua. Perguntei como quem não quer nada se o que ela achava de minha fazenda de formigas era verdade. Ela bocejou:
 - Lógico, é patético!
 Vi a marreta no chão, meu pai usava para fincar cercas.
 Pensei alto, disse que quando era pequeno o Caio sempre falava que fazenda de formigas era patético e que eu não sabia o que os dois tinham contra a pobre da fazenda.
 Asquerosamente ela respondeu a minha divagação:
 - O Caio? Essa opinião é minha, se ele pensa igual... Aquele lá fala tanto e trepa tão mal...
 Fiquei cego de raiva perante a revelação, a marreta se apoderou de mim como um apêndice nas mãos. Com uma marretada certeira acertei suas costas. Eu sabia o que fazia, estudo medicina.
 Ela paralisada do pescoço para baixo murmurou xingamentos enquanto eu ficava ali, com dificuldade ela perguntou o que eu iria fazer.
 Fui até a cozinha buscar algo.
 Na pequena cozinha peguei o pote e despejei em minha doce Ritinha todo o açúcar.
 E como era doce.
 Outra marretada foi dada. Desta vez em minha fazenda de formigas, joguei milhares delas em cima de Ritinha.
 Sendo comida por tantas bocas, por tantos!

 A última coisa que me lembro antes de sair da cabana era o ciúme que eu sentia daquelas formigas que se deliciavam com minha doce Ritinha. Ciúme."  





"Meu Caro, a sua narrativa é fantástica, pausada, envolvente, uma delícia de se ler."
José Cláudio Cacá, escritor do site Recanto das Letras em comentário de 29/04/2009.

Extras e referências:

1 - 


2 - Lembrando um encontro entre os pesadelos urbanos Nelson Rodrigues e o horror dos contos policiais, Todo mundo comeu surgiu na comparação da vida de Beto com o trabalho mudo das formigas.


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