Não é comum que perguntem.
As pessoas hoje, cada vez mais engolidas pelos celulares,
pela rede, não te olham nos olhos e perguntam o que você quer.
O que eu queria era uma vida idílica, idealizada e cálida
pois não levava desaforo pra casa.
Um trabalho que não me destruísse física e espiritualmente,
amigos que estariam lá para o que desse e viesse.
Um enlatado americano.
Quando percebi que estava beirando os trinta, que meu
trabalho era um saco e que meus amigos tinham suas próprias e indispensáveis
vidas, eu aceitei.
Eu queria planejar uma família como quando escrevia minhas
listas de supermercado.
Recebi uma gravidez inesperada e caótica, senti dores que
nunca senti e jamais fiquei tão incomodada.
Mas ela nasceu perfeita com um temperamento vivaz e único.
Me apago.
Queria que ela fosse para a melhor faculdade, tivesse amigos
leais e nunca perdesse aquele sorriso que era seu maior trunfo.
Nove meses de sofrimento, apenas seis anos fora da minha
barriga e ela adoeceu.
Eu queria o melhor tratamento, médicos competentes, bons e
baratos remédios.
Ganhei um plantão lotado de domingo e um diagnóstico errado.
Não esperaram muito no meu luto para cobrarem o pequeno
caixão.
Eu queria um forte marido, pai, conselheiro, amante e amigo.
Tropecei em você numa reunião de família, amigo de um primo.
Nãos conseguíamos parar de olhar.
Nunca almejou nada, não queria sair da cidade que nasceu.
Quando eu disse que estava grávida passou as mãos pelos cabelos e ajeitou as
coisas rapidamente.
A barriga já despontava quando subi ao altar, desculpe,
quando fui ao cartório.
Altar... era o que eu queria.
Poucos amigos e pressa na execução, em seguida uma lua de
mel planejada às pressas.
A bebê nasce e eu queria saber tudo.
Tudo.
Queria saber lidar com febres noturnas e birras. Queria
conhecer o jeito certo de segurar, de educar.
Mas eu não sabia.
E quando estava aprendendo... ela foi embora.
Seis anos, pouco mais que uma faculdade de Biologia com
especialização em Botânica, minha faculdade, que você disse não servir para
nada no trabalho de uma secretária.
Ao menos me deixou ter o jardim. Quando a pequena morreu
plantei rosas da cor preferida.
Eu queria um irreal jardim suspenso mas me contentei com
poucos metros quadrados no centro da cidade.
Descontente, você dizia que as únicas plantas decentes do
meu cantinho eram as rosas.
Falou que as outras plantas destoavam delas.
O que eu queria era um confidente, um parceiro íntimo.
Pode soar datado: me casei com um estranho.
Alguém que vendia imagem de bom moço nas festas de família,
que dizia me ajudar nos afazeres domésticos e me apoiar nas minhas escolhas.
E que na verdade apoiava os cotovelos na mesa e sempre pedia
algo.
Que me tinha para receber comida, roupas limpas e uma foda
ocasional.
O engraçado é que eu achei bonitinho quando elogiou meu café
na primeira vez que tomou.
“Está decidido, você sempre fará meu café! Seu café é ótimo”.
Engraçado; virou uma maldição.
Além de fazer todo o resto, tenho de fazer SEU café quando
você tem vontade.
O pior, hoje reclama de tudo inclusive do café.
Toma e diz que está ruim.
Como minha vida, meia vida, perdi a metade quando ela
morreu. Você quer acabar com o que sobrou.
Penso nisso tudo enquanto cuido de você. Penso, enquanto
passo SEU café e olho meu lindo jardim.
Cinamomo, Copo de leite, Coroa de Cristo, Chapéu de
Napoleão, Alamanda.
Comigo ninguém pode¹.
Não mesmo.
O que eu quero?
Vender essa casa, viajar, trabalhar com o que eu gosto,
justificada pelo luto.
Quero ser consolada durante o enterro na minha dupla
tragédia.
O café está pronto.
O que eu quero?
Eu quero que você se foda enquanto pingo essas gotas.
"Sua mente está em um mundo doente e sádico. Seus contos são repletos de referências maravilhosas e bizarras. O horror e a dor se tornam prazer em suas palavras, sua mente perturbada. A loucura faz parte da arte escrita, contada, por Raoni Barone. Um escritor de terror brasileiro que mostra seu potencial em sua arte, seus contos."
Brad Richard, arquiteto, produtor, músico, diretor e integrante da Confraria Negra.
Extras e referências:
1 - Mais detalhes do crime subentendido no conto O que eu vejo.
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