Citações

"Escabroso, delirante e assustador! Perfeito!" Por Drauzio Marqezini em 12/04/2012 no site Recanto das Letras.

domingo, 11 de junho de 2017

Dívida






1 - Era hora de dormir


 Na hora do sono, Daniel colocava duas cobertas por cima do corpo fizesse calor ou frio. Estava com sete anos, orfão de mãe e abandonado pelo pai, morava com o tio.
 O nome do tio era Wagner.
 Bons tratos e carinho fizeram que amasse o tio.
 E na hora de dormir, todas as noites, Wagner contava uma estória para Daniel.


 O garoto tinha um gosto estranho.
 Gostava das estórias de um assassino que sempre fugia da polícia.
 O assassino se chamava "Confessor"¹, costumava cortar as orelhas das vítimas. E a cada noite Wagner contava um capítulo da violenta saga do maníaco.


 O tio entrou no quarto e recebeu a pergunta:
 - Vai contar como continua a estória tio?
 Wagner sorriu.
 - Lógico Dan. Onde eu tinha parado ontem?
 O garoto piscou e começou a falar:
 - O Confessor tinha matado a madame Dória e estava saindo da casa dela.
 Wagner respondeu.
 - Certo.
 E prosseguiu a narrativa.


 "Após ter matado Dória porque achava que ela não o escutava, o Confessor retirou as orelhas da madame e saiu da casa.
 Chovia terrivelmente. No meio da rua ele dava passos lentos.
 Levantou uma das orelhas de Dória até a boca e começou a falar:
 - Está me ouvindo agora? Está me ouvindo sua miserável!?
 Estava passando pela ponte do rio coletor. Foi quando um carro desgovernado o acertou em cheio.
 Com a pancada ele foi jogado no rio.
 Pensou que iria morrer, não sabia nadar.
 Pensou que era melhor morrer que ser preso, então dois braços o puxaram para fora da água. Um homem vestido de branco o salvou.
 Recomposto do susto com a boca sangrando disse ao homem de branco.
 - Estou em dívida com você...
 O homem de branco disse que não se preocupasse, afinal, era um enfermeiro e realizava socorros todo tempo. O Confessor estendeu até o enfermeiro um cartão com um número de telefone.
 Ao realizar o movimento para pegar o cartão o enfermeiro o deixou cair, no chão viu assustado uma orelha. Perguntou ao Confessor:
 -Você feriu a orelha?
 Notou que o Confessor tinha as orelhas intactas.
 Olhou frio para o homem de branco.
 - Estou em dívida com você enfermeiro.
 E foi embora.
 O enfermeiro assustado olhou um tempo o cartão e..."



 Wagner interrompeu a estória, o telefone tocava. Foi atender, ao voltar ao quarto de Daniel disse:
 - Desculpe interromper a estória Dan. Amanhã continuo, tenho que resolver um negócio.
 O garoto meneou a cabeça e disse:
 - Dívida é o que meu pai tem com você, né tio?
 Wagner respondeu rápido:
 - Não Dan. É um prazer cuidar de você.
 E saiu do quarto. Disse uma mentira, achava que o irmão o devia.
 Apesar de gostar do garoto.
 A campainha tocou, um pobre coitado estava do outro lado. Wagner perguntou:
 - Por que ligou? Por que está aqui?
 Wagner deixou o pobre coitado entrar e foi ríspido:
 - Responda minhas perguntas!
 O sujeito acendeu um cigarro.
 - Vim buscar o que é meu! Minha situação melhorou e quero meu filho de volta.
 Espantado, Wagner encarou o magrelo sujeito, seu irmão Drauzio.
 E pensar que o dia foi tão bom...


 2 - Quando um homem chegou


 Drauzio tinha deixado Daniel com o irmão fazia quatro anos.


 Tinha um emprego bom e uma boa mulher, Norma. Mas isso era passado.
 Trabalhou no hospital Taciturno durante anos antes de Daniel nascer.
 Quando Daniel nasceu Norma morreu. Durante anos tentou dele mas não conseguia.
 Drauzio cometeu crimes diversos pois perdeu o emprego no hospital. A polícia o procurava então ele deixou Daniel com Wagner.


 E agora ele estava ali.
 - O que está pensando? Você some da vista do garoto e agora quer leva-lo?
 Drauzio sorriu sarcástico:
 - Está gostando de cuidar dele, não? Quando eu era pequeno você me contava estórias, sempre soube que você seria um bom pai.
 Cruel.
 - Só que ele é meu filho!
 Wagner estava nervoso:
 - Tá, você disse que sua situação mudou mas me parece ruim.
 Segurou o braço de Drauzio.
 - Fique conosco por um tempo Drauzio, veremos o que fazer depois.
 Drauzio soltou-se:
 - Olha, sei que você sabe que eu não queria filhos, mas a Norma não me escutava, olha o que aconteceu.
 Enfático:
 - Agora eu mudei de idéia. Eu preciso dele!
 Wagner tentou argumentar:
 - Eu gosto do garoto e vou lutar por ele!
 Drauzio respondeu alto:
 - Que foi seu porra! Sabe que qualquer exame de DNA me acusará como pai.
 Wagner cortou:
 - Fale baixo, Daniel está dormindo lá em cima.
 Drauzio o empurrou.
 - Qual é a tua Wagner? Nunca se casou. Vive como uma bichona velha nesta casa enorme e agora quer meu filho?
 Wagner foi em direção a cozinha, pensava no telefone próximo ao armário. Drauzio perguntou:
 - Que vai fazer?
 Wagner respondeu baixo:
 - Vou chamar a polícia! Vamos ver se sua situação mudou mesmo.
 Wagner fazia a ligação e falou em tom alto para a sala:
 - Vai embora Drauzio ou digo o endereço ao policial!
 Drauzio respondeu:
 - Diga o endereço...
 Wagner disse ao telefone o endereço. Drauzio disse:
 - O próximo a ligar serei eu. Ligarei para um amigo que me deve e ele vai acabar com você. Se quer saber a verdade, a situação não melhorou.
 Com medo o outro respondeu:
 - A polícia logo vai estar aqui.
 Confiante Drauzio disse:
 - É mentira sua. Você não ia ferrar com seu irmão. Agora eu; eu sou o ruim da estória e esse amigo meu vai te estraçalhar!
 Pegou um celular do bolso e começou a teclar.


 3 - Trazendo a verdade²


 Parou de discar e olhou o irmão que chorava no chão.
 - Faça-me o favor! Você tem quarenta e um, morra dignamente.
 Coçou o queixo.
 - O lance é o seguinte. A polícia tá no meu encalço e tenho que levantar uma graninha. Preciso de um aviãozinho e nenhum é melhor do que o meu guri.
 Wagner secou as lágrimas:
 - É pra isso que quer seu filho!? Para usá-lo!? Você é um monstro!
 Drauzio olhou atentamente o irmão:
 - Não. Monstro é quem eu vou chamar. Eu sou esperto, preciso do garoto.
 Dotado de ferocidade anormal, Wagner pegou o celular de Drauzio e o espatifou no chão.
 - Fora daqui seu desgraçado!
 Drauzio limitou-se a rir:
 - Tudo bem. Eu ligo para ele de qualquer outro lugar. Se ele chegar, deixa o garoto na frente da casa que você não morre.
 Wagner repetiu:
 - Fora daqui!
 Drauzio pegou o maço de cigarros do sofá. Demorou um pouco procurando o isqueiro, deleitando-se com o pavor que criou.
 Olhou Wagner com desprezo:
 - Você sempre foi um bundão Wagner! Sempre!
 E foi indo em direção a porta. Um voz de criança veio acima das escadas.
 - Tio o que tá acontecendo?
 Daniel estava assustado, Wagner respondeu alto:
 - Não é nada Dan. Não desce aqui, volte a dormir!
 Drauzio sorriu:
 - Dan!? Está mimando o moleque?
 Wagner disse tristemente:
 - É seu filho...
 Drauzio parou em frente a porta:
 - Dane-se ele. Vai trabalhar pra mim. Você é realmente um nada Wagner, desde a época em que trabalhamos no hospital.
 Abriu a porta.
 Deu de cara com um homem estranho.
 O homem olhou friamente para ele e puxou uma faca.
 De um golpe rasgou a garganta de Drauzio, este tombou ao chão, patético. O assassino olhou Wagner que estava estático.
 Lá de cima a voz infantil.
 - Tio? Tá tudo bem?
 Wagner estava paralisado, o assassino apontou para o alto das escadas com a faca cheia de sangue. Depois apontou para Wagner.
 A voz era gelada.
 - Recebi a ligação, vou sumir com o corpo. Agora suba lá e conte uma estória para o garoto dormir de novo.
 Wagner estava subindo as escadas enquanto o assassino arrancava as orelhas de Drauzio.
 E a voz gelada:

 - Minha dívida está paga enfermeiro.






"Assim como o personagem Daniel, o autor Raoni Barone gosta MUITO de histórias de terror, coisa que ele faz questão de demonstrar na criação de seus contos, ao compor uma linha narrativa tão cativante e uma história tão intrigante para o leitor. O que nos faz querer mais e mais. Em Dívida, temos o trunfo do conto dentro do conto feito com todo o cuidado para manter o leitor interessado em ambos e apenas sugerir qual seria a relação entre eles. Claro que, em um conto tão imaginativo, nem tudo é o que parece. Seus personagens parecem vivos, podemos até imaginá-los como num filme, isso mostra como seus contos, este em especial, tem um viés cinematográfico. Tudo bem caracterizado através de diálogos e atitudes. Análises a parte, sua leitura é altamente recomendada não apenas a leitores de suspense e terror mas também aos que gostam de contos curtos de impacto. Agora, resta apenas aproveitar este presente do autor que nos é oferecido." 
Aguinaldo Junior , irmão colecionador de HQs, filmes e livros.


Extras e referências:

1 - Confessor: assassino serial ligado ao culto da I.V., igreja da vingança cujo culto é apresentado no conto Devolva.

2 - Os títulos dos capítulos formam uma frase que expande o conto.



Nenhum comentário:

Postar um comentário