Citações

"Escabroso, delirante e assustador! Perfeito!" Por Drauzio Marqezini em 12/04/2012 no site Recanto das Letras.

domingo, 23 de julho de 2017

O maior espetáculo da Terra



   "O demônio tem outros nomes conhecidos, nomes humanos"


 1 - Pacto de circo


 Sua vida como hipnotizador estava um marasmo só, sim, existiam os famosos. Ele era somente uma atração do circo.
 Então se achava um fracassado.
 Até a mulher barbada tinha mais prestígio que o pobre Nero¹. Já via o dia que nem o dono do circo poderia aguentar seu desempenho medíocre.
 As pessoas não ficavam totalmente sob sua influência. Imagine que certa vez, a casa estava cheia e o Nero chamou alguém da plateia:
 - Quer participar do número?
 A menina olhou em volta e disse:
 - Tudo bem.
 E o Nero começou a hipnotizá-la. Certa hora gritou:
 - Você caíra em sono profundo agora!
 A menina visivelmente em alerta respondeu:
 - Quando? Agora?
 A gargalhada foi geral. Haviam aqueles que se perguntavam se aquilo era um número de comédia.
 Foi uma total humilhação. Dadas estas circunstâncias resolveu fazer um pacto com o diabo.
 Só não sabia como.
 Um dia terminou seu número, mais um fracasso, quando viu na saída um homem que lhe fez sinal e disse:
 - Você me chamou.
 Ele sabia que era o diabo, confie em mim, se você o olhar saberá que é ele.
 O diabo perguntou:
 - O que você deseja?
 Assustado Nero respondeu:
 - Quero ser famoso com a hipnose.
 O cramulhão:
 - Só isso?
 E o parvo:
 - Só.
 O demo deu uma tossida longa e fez que sim com a cabeça. Então Nero perguntou:
 - Qual é o preço? Minha alma?
 O diabo:
 - Também. Mas eu quero mais, eu quero almas inocentes.
 Nero pensou.
 "Pior do que está não pode ficar".
 E concordou.
 O diabo lhe soprou a testa e sumiu. E tudo mudou.



 2 - Testes


 Depois do pacto, Nero ouviu uma voz:
 - Teste seu poder em qualquer um.
 Viu umas pessoas reunidas em frente ao circo, entre elas uma loira que se destacava.
 Era muito linda, tinha um par de coxas espetaculares. Nero se aproximou e disse:
 - Oi. Eu sou Nero Caruso, qual é seu nome?
 A moça desmanchou. Estava hipnotizada como por mágica.
 - Lola.
 Ele notou que ela estava em transe e testou seu poder. Olhou nos olhos da moça.
 - Posso ir no motel com você agora?
 Ele melhorou a pergunta. Transformou em ordem.
 - Eu quero transar contigo agora!
 Ela segurou o braço dele e foi. Nero transou a noite inteira.


 Nero estava eufórico. Achava que o mundo estava em suas mãos, deixou Lola no motel e foi à vida.
 No quarto, uma moça derrama-se em lágrimas.
 Os comandos haviam passado.


 Primeiro Nero tomou o circo para si, depois pensou alto e disse:
 - Vou a televisão!
 E facilmente conseguiu vários empregos na TV, todos queriam anunciar produtos com Nero pois Nero vendia qualquer coisa.
 Começou a enriquecer. Dormiu com diversas mulheres.
 Uma rede de TV lhe ofereceu um programa próprio. Nero aceitou.
 Nas noites apresentava o Nero Caruso Show.
 Ia tudo às mil maravilhas até...


 3 - No ar


 No Nero Caruso Show de uma sexta-feira aconteceu algo estranho.
 Nero hipnotizava a plateia com aquele famoso número da colher, sabe? Aquele de entortar. Fácil para ele.
 Foi quando ouviu a voz:
 - Você tem que pagar pelo que te dei.
 Ele sentiu um arrepio e estava com os olhos esbugalhados. Quando tentou fechar os olhos, não conseguiu.
 Até o fim do programa ficou de olhos abertos sem sequer piscar. No camarim, com duas lanternas vermelhas no lugar dos olhos pensou.
 "Ele quer as almas dele. Isso que aconteceu com os olhos pode piorar!"
 Quando lhe advertiram a ir ao médico nada disse.
 "Se eu for ao médico vai piorar!"
 Não foi ao doutor, foi sim para a farmácia e comprou muitos colírios.


 Sem dormir por cinco dias Nero ficou paranoico.
 Durante uma apresentação com os olhos esbugalhados falou alto:
 - Não aguento mais! Eu quero dormir.
 E a voz no ouvido:
 - Então faça o prometido no trato!
 Alucinado, saiu em disparada do estúdio. Precisava comprar colírios.
 Em sua mansão sozinho gritou:
 - Eu faço!


 4 - Horror televisivo²


 Pensou num horário em que seus poderes de hipnose atingiriam mais fácil as pessoas. Um horário em que o cérebro estivesse mais fraco, mais cansado, mais fácil de influenciar. Precisava do horário, Nero percebera que sua influência presente era mais forte que a televisiva.
 Então o horário tinha de ser o melhor para ele.
 Por tudo isso, optou pela madrugada.
 Tinha as chaves da rede de TV, de madrugada o sistema era automático e passava filmes pornográficos até as cinco da manhã. Nero passou pelos seguranças.
 - Boa noite seu Nero. Trabalhando até tarde?
 Ele com os olhos horríveis.
 - Só vou pegar uns papéis...
 Entrou no estúdio sete, apontou uma câmera para si. Pretendia fazer uma minúscula pausa na programação.
 Passava das três da manhã, ele se preparava para realizar seu ato, mas foi assaltado pela dúvida.
 "O que eu digo?"
 A voz no ouvido:
 - Pense algo podre, meu podre Nero. Algo podre...
 E ele pensou e realizou sua pausa. Saiu do estúdio apressado percebeu que...
 Voltou a piscar.
 Estava extasiado, já imaginava uma noite de sono perfeita. Nem comprou colírios, somente correu para casa.
 Tirou as roupas rapidamente e jogou-se de olhos fechados na cama.
 E nem um segundo. Nem um mísero instante pensou no horror televisivo que provocara.
 Dormiu profundamente.


 5 - Café da manhã


 Dona Silmara não conseguia dormir e resolveu ligar a TV baixinho para não acordar o marido.
 Estava lá vendo uma cena de sexo quando houve um corte.
 Um cara de aspecto assombrado lhe disse coisas. Que ela esqueceu logo depois.
 E dormiu um pouco.
 Acordou rapidamente às seis, estava condicionada a isso, fazia isso todas as manhãs. Pegou algo no armário que ficava fora da casa.
 Foi preparar o café da família.
 Silmara sentou-se à mesa com os dois filhos e o marido. E esperou que comessem.
 - Que foi Sil? Algum problema, querida?
 O veneno de rato fez efeito rapidamente. Os filhos e o marido começaram a vomitar sangue.
 Morreram.
 Ela, como um robô, levantou-se e pôs os dedos no sangue do marido.
 Escreveu na parede "BARBÁRIE"³.
 Sentou no chão e começou a chorar.


 Seria um caso de homicídio e loucura. Seria, se exatamente as mesmas situações e a mesma palavra não fossem encontradas em outras trinta casas.
 As donas de casa assassinas não sabiam explicar o porquê.
 Algumas se mataram.
 A polícia estava com um problemão, o número de corpos passava de cem.


 Nero abriu os olhos e não conseguiu mais fechá-los, de novo.
 E a voz o assombrou:
 - Ligue a TV. Foi brilhante! A ideia da marca na parede melhor ainda, quero mais.
 Nero ligou a TV e deparou com o caos que causou. Um policial dizia:
 - Chamamos psicanalistas para tratar deste caso incomum, a maioria concorda com a suspeita de ataque mental, direcionado para as donas de casa.
 Algumas pessoas riam atrás do policial. Ataque mental, há.
 As imagens aterrorizaram Nero. Seus olhos doíam e saiu para comprar colírio.
 - Eu sei que você quer mais! Pense em algo e escolha um novo público. Você gostou de matar sem sujar as mãos, eu sei!
 A voz insistia.
 Mais um dia de tortura e Nero novamente se rendeu.
 - Eu faço!
 Mais uma noite na emissora.
 Algo direcionado aos pais de família. E mais uma vez, após sua pausa, dormiu profundamente.


 6 - Os vizinhos pacatos


 Guilherme era considerado o vizinho pacato, acima de qualquer suspeita.
 Naquela manhã ele desceu ao porão buscar as armas que herdara do pai.
 Subiu no telhado. O primeiro vizinho passou na rua.
 - E aí Guilherme? Limpando o telhado?
 Guilherme atirou na cabeça dele. E continuou acertando carros que passavam, pessoas, cachorros.
 Só parou quando foi atingido pelo Bruno.
 Outro vizinho pacato que também resolveu brincar de tiro ao alvo em cima de sua casa.
 Os mortos ultrapassaram trezentos.


 A polícia conteve a fúria de vizinhos pacatos somente à tarde. Em investigações nas casas dos atiradores encontravam em paredes:
 "BARBÁRIE"


 Nero foi cruelmente maléfico, suas mensagens eram direcionadas.
 Qualquer pessoa que não pertencesse ao grupo esquecia as mensagens.
 E experimentou sua imunidade.


 Os ataques ocorriam de forma sequencial, a polícia estava atônita. Não sabia o que fazer.
 E durante uma semana os números foram aumentando.
 Mães afogaram bebês em privadas.
 Depois alguns policiais fuzilaram presos nas celas.
 Em seguida, vans escolares atropelaram crianças.
 Num dos ataques as filhas únicas se enforcaram. Mas com esse ataque, Nero fatalmente se ferrou.
 Lola, a moça que foi usada por ele viu a pausa na TV.
 Era filha única e não se afetou, pior, reconheceu Nero e foi a polícia.
 O diabo não disse a Nero que pessoas afetadas por ele uma vez não eram mais afetadas.
 Ela chegou esbaforida na delegacia.
 A estória da moça era tão maluca que parecia verdadeira.
 - Estamos em desespero aqui. Minha irmã morreu com um tiro dado pelo vizinho!
 Lamentava-se o policial que a ouviu.
 - Precisamos de uma pista e se é isso que a moça fala, vamos pegar esse puto!
 Deu a ordem.
 Uma divisão enfurecida da polícia encaminhou-se para a emissora de TV. Todos conheciam Nero Caruso.
 Passava de uma da manhã e Nero ia realizar sua pausa dentro de poucos minutos. Ao longe, ouviu as sirenes.
 A voz sarcástica:
 - Vão te pegar.
 Nero esbugalhou ainda mais os olhos.
 - Nem fodendo que vão!


 7 - Soldados involuntários


 Pararam várias viaturas na frente da emissora, Nero se apressou a descer as escadas. Foi até a segurança.
 - O que será que tá acontecendo seu Nero?
 Nero chegou aos quatro seguranças e disse:
 - Peguem suas armas e atirem nestes policiais, senhores! Morram por mim!
 Os vigilantes sacaram as armas e receberam a polícia à bala. Mataram alguns policiais antes de serem alvejados.
 Enquanto isso, Nero preparava sua surpresa.
 Com um megafone gritou de uma janela:
 - Atirem em seus companheiros e depois se matem!
 Aquilo foi um tiroteio dos diabos, um banho de sangue.
 Outra viatura se aproximava do local, nela estavam dois policiais. O que dirigia foi atingido no rosto. O carona abaixou-se e esperou a viatura bater.
 Esperou, agora tinha certeza. E tinha ódio de Nero, afinal, sua irmã morreu por sua culpa.
 Nero esperou escutar o último tiro e saiu calmamente da emissora. Não tinha uma gota de sangue em seu terno e assoviava.
 Conseguia piscar. Ia ter mais uma noite boa de sono.
 Ele pulava os cadáveres, quando o policial que não o ouviu no megafone esgueirou para fora da viatura.
 - Você matou minha irmã!
 Nero tentou falar mas o soco foi violentíssimo e lhe quebrou a mandíbula.
 O espancamento continuou, sentiu que algo quebrava dentro de si, estava vendo a morte. Mas esta não chegou.
 Outros policiais chegaram e tiraram o agressor de cima de Nero.
 - Ele matou minha irmã!!
 Dentro da emissora, fitas e provas que incriminariam Nero por toda sua podre vida.


 Devido a surra que levou, estava em coma. Fazia tempo que não dormia tanto. Quando acordou estava em um hospital com uma trava no maxilar que estava quebrado. Amarrado à cama.
 A enfermeira disse:
 - É necessário?
 Um dos policiais que o escoltavam à frente do quarto disse:
 - Moça, temos provas que esse cara sozinho está envolvido em mais de mil e quinhentas mortes.
 A enfermeira assustou-se.


 Nero piscava e sentia-se livre, podia morrer preso. Era melhor assim.
 A enfermeira vinha limpá-lo e alimentá-lo:
 - Todos merecem uma segunda chance.
 Dizia a Nero que não podia falar, só mexia a cabeça.


 Melhorava visivelmente. A enfermeira disse certo dia:
 - Hoje vamos tirar essa trava.
 E saiu do quarto. Uma voz familiar disse aos ouvidos de Nero:
 - Não esqueci de você Nero!
 Sentiu novamente a dor nos olhos tão característica.
 - Não esqueci de você...


 A enfermeira olha Nero e estranha:
 - Calma, já vou tirar a trava. Não precisa olhar assim.
 Lentamente ela tira a trava. Nero lhe olha nos olhos e diz com a língua sem uso a tempos:
 - Todos merecem uma segunda chance.
 A enfermeira sorriu mas logo sentiu um arrepio. Friamente, Nero entrou em sua alma e disse:

 - Me solta!





"Daria um ótimo filme!"
Astrid Thompson, escritora do site Recanto das Letras em comentário publicado em 08/05/2009.


Extras e referências:

1 - 
     Nero Caruso, hipnólogo famoso por seus crimes sequenciais. Jesus fez mortos andarem com seus comandos divinos, Jesse Custer das HQs de Garth Ennis fez homens feitos se borrarem com a voz de um ser híbrido do céu e inferno. Nero usa sua habilidade incrementada para matar sua sede de poder e seu desejo sexual. Após estes acontecimentos, o vilão desapareceu por anos e fundou uma seita apocalíptica chamada Sem laços, sem remorso, que influenciou mais crimes e situações anormais.

2 -  
      Horror televisivo, o nome do capítulo homenageia uma história da sensacional Contos da Cripta, HQs que primavam pela violência e horror gráfico.

3 - Barbárie, palavra presente nos crimes de Nero, a polícia apontava como um cartão de visitas ou assinatura.


Nenhum comentário:

Postar um comentário