“Ocasião que torna
infiéis os prometidos”
- Agora ela deu pra
achar que eu vou abandoná-la. Você acredita?
Omar encheu a mão de
salgadinhos e respondeu.
- Grávidas são assim
mesmo. Elas ficam mais sensíveis e o escambau, o que você diz de forma simples
vira a terceira guerra mundial.
Leandro coçou o
queixo.
- Então você passou
por isso quando a Amélia estava grávida?
- Ô, ela achava que
eu ia embora com a vizinha que só tinha dois dentes!
Riram, Leandro olhava
para a paisagem repetitiva. A vida estava nos eixos, emprego estável, filho a
caminho, acabando a faculdade. Sempre quis ser pai, quando receberam o
resultado do exame abriu um sorrisão.
Tinha certeza que não
iria deixá-la¹.
A viagem de ônibus
continuava. Omar empolgado, queria conversar sobre algo que lera.
- Quem escapou disse
que as luzes se apagam, ainda fico com isso na cabeça, é como uma bateria sem
carga.
Leandro concordou com
a cabeça, Omar prosseguiu.
- Outros disseram
enxergar uma luz distante em um breu, um farol moribundo.
A metáfora de Omar o
levou a pensar em Tereza, sua mulher foi o farol de sua vida turbulenta.
Três horas da manhã.
Um ruído era o sinal
nas trevas do quarto, Tereza estava chorando, ele a abraçou forte.
- Estou aqui, está
tudo bem.
As lágrimas escorriam
pelo rosto e molhavam o peito de Leandro.
- Com o que sonhou
linda?
Ela comprimiu-se nos
braços dele, não respondeu de imediato. Ele a conhecia como a palma da mão e
lhe deu tempo.
- Sabia que ia me
deixar, foi embora com uma loira bonita! Eu não sou bonita.
Ela chorava baixinho.
- Eu não vou te
deixar, já tenho tudo o que eu quero do mundo.
A apertou, tocando o
barrigão.
- Estou falando
sozinho aqui meu?
Leandro voltou a si.
- Desculpe Omar.
- Ainda pensando na
Tereza né? Você ama ela cara, não entre na paranoia. Lembre-se do que eu disse:
grávidas são sensíveis.
- Eu... eu não, eu
nunca pensei em trai-la sabe? Como foi que ela colocou isso na cabeça?
- Leandro, não
precisa me convencer. Sei que nem pensa em fazer cachorrada com a Tereza. A sua
mulher só teve um pesadelo! É só um pesadelo cara! Não alimente a ideia que não
faz bem pra nenhum dos dois. Mudamos de assunto; eu acho que trabalhamos muito
longe meu velho.
Leandro sorriu, Omar
podia ter razão. Tentar apagar um incêndio com jornais não daria certo, retomou
a conversa.
- Continue o assunto
de que falava antes.
Omar aprovou com
brilho nos olhos.
- Sobre o filme
mental. Nossas melhores cenas em um compilado pessoal especial. Melhor que
Copolla, Scorcese ou qualquer grande diretor². Nossas maiores conquistas,
desejos, decepções, saudades e amores. Sempre achei esta ideia mais elegante. O
que acha?
- Gosto mais de outra
ideia.
- Qual?
Leandro não
respondeu, diante dele uma loira bonita procurava um lugar para sentar. Vinha
sorrindo e era como a descrição de Tereza.
Omar parecia ter
compreendido a perda de foco do amigo, contemplou os próprios pensamentos. Olhava
pela janela, absorto, enquanto Leandro inebriava-se com a presença daquela
mulher.
Era a narração de
Tereza mas lhe era instintivamente familiar. Sentia que a esperou naquele
ônibus por toda a vida. Ela se sentou em um banco ao seu lado.
De onde a conhecia?
“De meus sonhos”,
sorriu ao pensar. O vestido era retrô, uma perfeita pin-up. Todo movimento
encantava com beleza plástica, qualquer ângulo que a olhasse era incrível, a
loira era a fotogenia em pessoa.
Leandro tentava não
encarar mas era torturante não olhar. Buscava analogias para entender aquela
presença. O tratamento com o pensamento racional por vezes nos leva a ruas sem
saída.
Três e dez da manhã.
Ela conseguia falar,
colocou pausadamente as características da mulher.
- Tem entre vinte e
cinco e trinta anos, é loira com os cabelos ao meio do pescoço, ondulados e
modelados. É nítido...
As lágrimas desciam.
- Olha só, eu não
conheço nenhuma loira assim, tira essas suposições da cabeça e volte a dormir.
Eu estou aqui.
Prosseguiu como se
não o escutasse.
- A loira é gostosona
e tem um sorriso de matar. Qualquer um iria com ela.
- O calor daqui
contrasta com a ventania lá fora.
- Desculpe.
A loira falava com
ele lhe tirando a lembrança, a figura estupenda roubava almas com tal sorriso e
agora dava o mais completo, o mais belo para ele.
- Eu dizia que o
calor daqui do coletivo contrasta com a ventania lá fora, mesmo assim alguns
gostam do calor, não é?
- Isso me lembra o
título de um filme...
Olhou pela janela
puxando a memória. Estupefato, notou que tudo parecia estático fora do ônibus.
A loira sussurrou:
- Quanto mais quente
melhor³.
O arrepio que
percorreu o corpo de Leandro era o resultado do encaixe das peças, o choque da
compreensão.
Três e quinze da
manhã.
Ela ainda chorava.
- Eu só queria que o
Leandro ficasse comigo.
Ele tocou os braços
dela.
- Mas eu estou aqui
meu bem, eu estou aqui.
Ela estendeu as mãos
para a beirada da cama livrando-se do abraço.
- Leandro...
Leandro...
E foi neste momento
que ele percebeu que Tereza ainda dormia.
A sua ideia era a da
visita singular de alguém que você quisesse ver, de alguém que você conheceu
antes ou de alguém que você nunca encontraria. Alguém que viria ao seu encontro
no instante derradeiro. Uma espécie de acerto de contas com seus desejos mais
profundos.
Mito que constava em
diversas tonalidades em várias partes do mundo.
A loira impossível
lhe deu a dica ao mencionar o filme. O racionalismo de Leandro se fragmentou
com as palavras.
A querida “Sugar
Kane” lhe sorria transmitindo aconchego, sua musa de sonhos molhados da
adolescência, da exibição escondida dos filmes de seu pai. A mulher radiante
ícone da história do cinema lhe disse:
- Pergunte o que
quiser.
Conversaram bastante,
depois Leandro cutucou Omar que não demonstrou reação. Queria que Omar
conhecesse a loira mas resignou-se.
- Ele não pode
responder, continua com seu filme mental. Agora vê de diversos pontos a cena em
que conheceu sua querida Amélia.
Leandro então notou
os outros passageiros, havia um senhor com os olhos semicerrados e as mãos
espalmadas.
- Aquele vê um farol
moribundo. Está indo de encontro a ele.
Outra mulher estava
de olhos esbugalhados.
- Para aquela o mundo
escurece.
Alguns passageiros
pareciam congelados, Leandro perguntou o que significava aquilo.
- Estes passarão por
isto somente com uma lembrança ruim.
Leandro pôs as mãos
na cabeça.
- Pode me dizer ao
menos como ele será?
Ela sorriu.
- Ele parecerá muito
com você.
Ele segurou mais um
pequeno tempo.
- Então; podemos ir.
Abraçou e beijou a
loira, Omar viu o final de seu filme, Tomás foi engolido pela luz, Eliza caiu
nas trevas.
E o ônibus encontrou
a carreta.
Dia sombrio. Tereza
era amparada pela mãe, com a brutal notícia milagrosamente segurou a criança de
sete meses no ventre.
A caixa de Leandro
era lacrada.
- Sabia que ia me
deixar, foi embora com uma loira bonita. Eu não sou bonita...
Dizia baixinho em
meio ao choro.
- Tem entre vinte e
cinco e trinta anos, é loira com os cabelos ao meio do pescoço ondulados e
modelados. É nítido.
- Filha o que você
está dizendo?
Na grama agachada,
encostou nas pernas da mãe. Estendeu as mãos para a abertura no solo.
- Leandro...
Leandro...
A mãe de Tereza
sempre pensou que a filha aceitava melhor o fato dizendo que Leandro fora
embora com uma loira.
Tereza nunca gostou
de cinema. O pequeno Júlio cresceu forte notando a amargura da mãe.
Já adolescente teve
um sonho estranho; sua mãe ia embora com um homem mais velho e muito parecido
com ele.
Ela parecia feliz.
Extras e referências:
1 - Uma ligação com o tema central do conto, a imprevisibilidade da morte.
2 - Talvez uma forma racional de lidar com o fim, uma associação com as artes dos homens.
3 -
Quanto mais quente melhor, grande comédia com a estupenda Marilyn Monroe.
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