"Por vezes o
sentido da vida é a insanidade"
1 - Reunião babaca
Reuniam-se toda
sexta-feira, era um grupo de leitura e discussões sobre poesia.
Quem presidia as
sessões era um tal de Plínio.
Plínio era professor
de português dos mais quadrados, era praticamente a figura geométrica. Chato
era apelido.
Os outros integrantes
da reunião pouco diferiam dele.
Lucas e Tatiane: um
casal de poetas medíocres, um crítico certa vez os chamou de casal calmante, devido
ao teor sonífero de suas poesias monótonas e sem sal.
Otoniel: amante da
poesia "dor-nos-córneos", separado há anos, ainda amava a adúltera
ex-esposa. Detestava qualquer conotação sexual em poemas.
Dona Vera: viúva que
mantinha o Dona, lutava com o câncer e repudiava poesias macabras e sinistras.
Temia imensamente a morte.
O Plínio nem dava
aulas na sexta, apenas para estar com seus amigos em chatice. O grupo lia e
relia poetas que não cheiravam, nem fediam.
Se alguma pessoa
citasse Augusto dos Anjos era taxado de mórbido por eles. Se citassem Vinícius,
era uma página central de revista de nus para seus ouvidos, julgado
pornográfico pelo grupo. E o Bocage?
Bocage era promíscuo.
Ginsberg?
Nem queriam saber de
Ginsberg.
Numa sexta-feira
comum estavam em sua "sede", a casa de Plinio, quando alguém bateu na
porta. Plínio foi atender.
- Quem será?
Era uma jovem linda¹.
Estava sobriamente vestida de preto. Plinio pensou:
"Deve ter errado
o endereço, ou deve estar vendendo algo."
- Aqui é a reunião de
amantes da poesia?
Plínio respondeu.
- Sim... o que
deseja?
A jovem disse firme:
- Participar.
Plínio já ia fechando
a porta, a moça continuou ali.
- Desculpe é um grupo
fechado. Passar bem...
A moça colocou o pé
na porta, bem no vão.
- Tratam a poesia
como algo restrito?
Quatro pares de olhos
estavam em cima das costas de Plínio. Esperando pela resposta que ele daria.
Ele pensou e disse:
- Não mocinha... É
que, é que nem sabemos o seu nome.
A linda moça
respondeu:
- Saibam somente que
sou uma apreciadora de boa poesia. Também faço meus versos.
Os olhos de todos
brilharam até os de Plínio, afinal, faziam meses que só liam e reliam poesias
antigas. Leram até a obra completa de Lucas e Tatiane. Mesmo assim o quadrado
disse:
- Desculpe mocinha.
Os quatro atrás
responderam:
- Não; espera!
Plínio ficou sem
ação, Otoniel segurou seu braço e cochichou em seu ouvido:
- Se ela for ruim a
chutamos...
A moça impaciente:
- E então?
Plínio à contragosto:
- Está bem. Entre.
E a deixaram entrar
naquela reunião babaca.
2 - Desconcertante
Sentou-se numa
cadeira enquanto Plínio fazia as apresentações.
- Esse é Otoniel.
O tímido Otoniel
levantou a mão.
- Essa é a Dona Vera.
Vera olhou com um
pouco de inveja para a saúde da jovem.
- Esses são Lucas e
Tatiane, já deve ter ouvido falar deles. São escritores e poetas de nossa
cidade.
A jovem respondeu:
- Nunca ouvi falar
deles.
Lucas estendeu a mão
até a voluptuosa jovem. O gesto foi seguido com um olhar de congelante ciúme de
Tatiane.
- Muito prazer. Sou
Lucas.
Sabendo que Lucas
olhava seu decote, se curvou ainda mais para saudá-lo.
- O prazer é meu.
Tatiane resignou-se a
acenar com a mão direita. Plinio logo chamou a atenção de todos:
- Hu-hum. Eu sou
Plínio. Como a senhorita se chama?
Ela balançou os
cabelos negros e olhou profundamente os olhos dele.
- Logo recitarei
minha poesia. Se não souberem meu nome não poderão me atacar, melhor manter
assim.
Dona Vera começou a
rir e foi seguida pelos outros. Plínio ficou envergonhado com o desplante.
- É bem espirituosa,
diga-se de passagem.
Dona Vera ria
ruidosamente. Fazia tempo que não ria.
Depois começaram a
recitar poemas já recitados centenas de vezes.
Enquanto a moça
bocejava.
- Posso recitar uma
poesia minha?
Plínio até pensou em
passar instruções sobre a estética da poesia, mas estava derrotado pelo dia,
então falou:
- Pode.
A moça levantou-se e
começou a recitar sua poesia. Todos ficaram boquiabertos.
Fetos de dedos
quebrados, luxúria de sexo sem limites, ausência da moral e bons costumes. Tudo
isso estava na poesia.
Mas a brutalidade dos
assuntos era tão bem citada, de forma tão genial que ninguém a interrompeu.
E ao final com
espanto aplaudiram.
Seus ouvidos estavam
acostumados com poesias pasteurizadas, então deleitaram-se naquela gota de
caos.
Após os aplausos a
moça quis ir embora. Otoniel timidamente segurou seu braço. A moça se virou e
ele logo tirou sua mão.
- Você volta na outra
sexta?
A moça o questionou:
- Somente se me
aceitarem. Então eu volto.
Otoniel olhou os
rostos dos companheiros que não tinham ressalvas. E disse baixo:
- A aceitamos,
lógico.
A moça riu:
- Então eu volto.
Quem não gostou foi o
Plínio. Mas teve que se acostumar, afinal toda sexta abria a porta para a linda
moça.
E pensava.
"Nós nem sabemos
o seu nome."
3 - Otoniel
A moça começou a
declamar suas poesias toda sexta.
- Ela é muito boa.
Dizia o Lucas e levou
um safanão de Tatiane.
Otoniel aos poucos
ficava mais solto nas reuniões, até conversava um pouco mais.
Um dia todos foram
pegos de surpresa.
A moça ia começar a
recitar e disse:
- Essa é pra você
Otoniel.
A poesia entrou fundo
em sua alma. Chamava-se "Desfrutar".
Otoniel chegou no
muquifo que morava e pensou alto:
- Me separei há tanto
tempo. O que resta dela nessa casa ainda?
Olhou um armário de
roupas:
- Sobrou só isso.
Esse era o armário dela. Me livrarei dele!
Levou o armário em
sua caminhonete e o queimou em um descampado. Ao chegar em casa sentiu-se vivo
novamente.
Começou a escrever.
Escreveu furiosamente
um poema maravilhoso. Pena que teria de esperar até sexta para ler para seus
amigos.
A semana passava e
Otoniel sentia um vigor crescente. Começou a reparar novamente nas mulheres.
E eram tantos seios,
tantas coxas, tantas bundas que povoaram sua mente de obscenidades.
"Há quanto tempo
não fico assim"
A resposta era fácil.
Desde que se
separara.
E chegou salivando na
sexta pronto para declamar sua poesia.
A linda moça pegou a
poesia das mãos de Otoniel e disse em seus ouvidos:
- Dedique essa para a
Vera.
Sem pestanejar,
Otoniel fez o que a moça pediu. Se chamava "Aproveitar".
4 - Vera
E a poesia atingiu
Vera com exatidão. Riu entre lágrimas e foi amparada por Otoniel. No que ela
encostou em seu peito ele sentiu os seios rijos. Não pôde disfarçar a ereção.
- Nossa Otoniel...
Ela sussurrou
sorrindo, nessa hora não lhe passava pela cabeça seu câncer.
Continuaram
abraçados, mais para sentir o corpo do outro que para consolo. Vera falou
baixinho:
- Vem comigo para
casa.
Chegaram na casa de
Vera aos tropeções, arrancaram as roupas com tanta rapidez que ficaram em
trapos.
Se amaram e
rapidamente chegaram ao ápice. Fazia tempos que não faziam amor.
Carne e suor.
Sorrindo ela pegou um
cigarro e o beijou. Disse entre uma baforada e outra:
- Foda-se o câncer de
pulmão.
Após o cigarro ela o
beijou violentamente. Precisava senti-lo de novo, precisava agarrar-se a
existência curta.
E amaram-se com sexos
e dedos, com dedos e mordidas. Com saliva e pele.
De manhã, Vera ouviu
o barulho da rua e acordou.
De repente escrevia.
Escreveu um poema
entre um cigarro e outro. Otoniel debruçado na cama olhava a bonita viúva.
- Você é linda!
No dia de declamar
sua poesia, a bela moça tomou-a de suas mãos.
E disse para Vera:
- Dedique esta para
Lucas e Tatiane.
E Vera assim fez.
5 - Lucas e Tatiane
O casal recebeu a
poesia com espanto. Logo Tatiane agarrou Lucas e começou a beijá-lo.
- Cínico. Te amo!
Plínio não entendia
nada, passou a falar alto para o casal que já estava seminu.
- Ei, que pouca
vergonha é essa? Está encerrada a reunião.
Lucas olhava a dias a
bela moça só para despertar ciúme na bela Tatiane.
Tatiane notou isso
durante o poema de Vera. O título era explícito: "Ciúme e desejo".
- Eu te amo. Eu te
amo Lucas!
Enquanto faziam amor
Tatiane chorava de felicidade. Recordava em flashes tudo o que Lucas fez para
estar com ela.
Depois estavam juntos
e escreveram um belo poema intitulado apenas "Verdade".
Na sexta-feira
levaram o poema para a reunião. A bela moça nem precisou dizer.
- Dedicamos este
poema ao Plinio.
O poema contava a
história de um casal que foi proibido de permanecer unido.
O rapaz matou então o
pai da moça e fugiram da cidadezinha de interior.
Vieram viver na
cidade grande como poetas.
Seus nomes.
Lucas e Tatiane.
6 - Plínio
Plínio ouviu tudo.
- Boa ficção há,
há...
O casal respondeu:
- Não é uma poesia
ficcional. É a pura verdade.
Plínio coçou o braço
nervoso.
- O que essa moça fez
com vocês em um mês? Perderam a cabeça é?
Otoniel respondeu:
- Na verdade, acho
que nos encontramos. Como somos realmente, todos possuem segredos.
Plínio desesperado
por apoio fitou Vera:
- Dona Vera! Diz pra
eles que eles perderam a cabeça.
Vera respondeu:
- Não posso. Meu
falecido marido me proibiu de fumar, dizia que era coisa de vagabunda. Então descobri
que ele me traía, o vagabundo. Empurrei ele na frente de um caminhão. Acidente,
pensaram. Fumei tanto que estou com este câncer.
Otoniel continuou:
- Na verdade eu não
me separei de minha mulher, eu a matei. Coloquei ela no armário que tinha em
casa, ela também me traía.
E o Plínio:
- E por que me dizem
isso?
Otoniel respondeu:
- Sei lá. Ela nos deu
esse poder.
E apontou para a
moça.
Plínio respondeu:
- Mas nem sabemos
quem ela é.
Mas os outros sabiam.
Vera disse:
- Ela é aproveitar.
Otoniel seguiu:
- Ela é desfrutar.
Lucas:
- Ela é o desejo.
Tatiane:
- Ela é o ciúme.
E ela era tudo isso
coordenadamente e caoticamente. Impassível de sua cadeira, ela sorria.
- Seus loucos! Eu vou
denunciá-los.
Otoniel segurou
Plínio:
- Você é tudo que ela
detesta! Se perder a cabeça agora; fica frio...
Fizeram um bacanal
depois. Beberam e sujaram a casa. Nem se lembraram da moça.
Bem depois, Vera
disse:
- Onde ela está?
Fisicamente ela havia
sumido. Mas estava com cada um deles.
Foram embora da casa.
Na sala o cadáver
decapitado de Plínio estava sentado na cadeira.
A cabeça estava na
geladeira.
Na reunião dos malas
adoradores de bossa-nova chata a campainha toca.
Do outro lado da
porta uma bela moça sorri.
- Posso participar?
Extras e referências:
1 - Enigmática e extremamente poderosa, a bela moça sem nome uma representação do caos e da insanidade.
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