Citações

"Escabroso, delirante e assustador! Perfeito!" Por Drauzio Marqezini em 12/04/2012 no site Recanto das Letras.

sábado, 29 de julho de 2017

As chaves certas




 Eu¹ estou nesta casa a muito tempo.

 Apenas seguindo esta vida estranha.

 Abro a porta com cuidado, deixo o lixo ou faço qualquer coisa rapidamente.

 A saída sempre é assegurada antes, verifico seu estranho mundo durante um longo tempo pelo meu amigo, o olho mágico.

 Sua sujeira, suas monstruosidades, tem de ficar fora.

 Porta; barreira, muro que me mantêm pouco mais protegido.

 Para quem ou o quê invadir guardo a arma, dependendo do que entrar não será de muita valia.

 Eles, o acaso, os lixeiros, os médicos falhos, assassinos apoiados na escuridão, os canais fora do ar que nos induzem, criaturas rastejando no escuro, trabalhos que nos matam na rotina, filas que apodrecem nossos espíritos, contas que nos encarceram no processo, estão todos nos rodeando, conheço cada centímetro da minha casa².

 Ponto.

 Sempre que estou pensando questiono o porquê de se escrever, olhando as paredes de minha prisão aceita questiono muito.

 Que serve de terapia todo mundo sabe, quem já fez algum tratamento mental conhece isso, eu descobri algo importante há algum tempo.

 Você nunca está sozinho realmente sabia? Se o humano se comunica de várias formas mesmo com sua fragilidade assustadora, o que dizer de coisas incrivelmente profanas e más?

  este texto agora perguntando-se: onde ele quer chegar?

 Meus contatos rareiam, é verdade. Sou taxado de insano por me esconder no lugar que me é mais seguro.

 Textos, contos, mensagens escondem mais significados que aparentam em seu âmago.

 Vírgula.

 Eles, que escreviam coisas sinistras antes de mim entendiam esta simetria macabra, os que ainda escrevem partilham de minha dor enquanto em sua ignorância o resto do mundo sorri.

 Sorriem pois desconhecem a totalidade deste absurdo, eu tive alguns sonhos ruins em que vislumbrei este caos, por estes sonhos eles falaram comigo, os medos falaram comigo e me deram grande incumbência.

 Acima de qualquer terapia e de qualquer vocação, os homens sempre seguem as ordens de seus medos.

 De toda agonia que você pode imaginar confrontar seu maior medo é ápice.

 Seus temores lhe visitam quando está sozinho, quando está sozinha? Ora, eu já disse... nós nunca estamos sozinhos realmente, eu tenho suas chaves... as chaves certas.

 Ombros curvados em direção desta página não te fizeram entender? Por vezes dizemos tudo o que queremos pelas primeiras palavras de nossos períodos.

 HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ









Última página do diário de Allan Miller³.



"Você fez alusão a nomes como Poe, Lovecraft e até Jamie Delano encontrou as chaves e sabe usá-las muito bem."
Jefferson Ravazzi, colecionador irmão.


Extras e referências:

1 - "Eu apenas abro sua porta para eles. Sempre que você lê meus textos, eles sorriem acima de seus ombros." As primeiras palavras dos períodos indicam uma mensagem de Miller sobre sua real intenção.

2 - Aqui Miller faz referência a vários contos de Barone: Peculiaridades, Horda, O maior espetáculo da Terra, Rasteja no escuro, Fim do expediente, A espera. Trechos a frente Miller presta homenagem a grandes escritores perturbados.

3 - Allan Miller, o nome junta dois gênios das HQs (Alan Moore e Frank Miller), psiquiatra e escritor de Horror recluso, Miller sofre de Agorafobia e durante anos trabalhou com os piores casos do Hospício Santa Clara. Um de seus livros mais famosos é Penumbra e cenas mórbidas.




domingo, 23 de julho de 2017

O maior espetáculo da Terra



   "O demônio tem outros nomes conhecidos, nomes humanos"


 1 - Pacto de circo


 Sua vida como hipnotizador estava um marasmo só, sim, existiam os famosos. Ele era somente uma atração do circo.
 Então se achava um fracassado.
 Até a mulher barbada tinha mais prestígio que o pobre Nero¹. Já via o dia que nem o dono do circo poderia aguentar seu desempenho medíocre.
 As pessoas não ficavam totalmente sob sua influência. Imagine que certa vez, a casa estava cheia e o Nero chamou alguém da plateia:
 - Quer participar do número?
 A menina olhou em volta e disse:
 - Tudo bem.
 E o Nero começou a hipnotizá-la. Certa hora gritou:
 - Você caíra em sono profundo agora!
 A menina visivelmente em alerta respondeu:
 - Quando? Agora?
 A gargalhada foi geral. Haviam aqueles que se perguntavam se aquilo era um número de comédia.
 Foi uma total humilhação. Dadas estas circunstâncias resolveu fazer um pacto com o diabo.
 Só não sabia como.
 Um dia terminou seu número, mais um fracasso, quando viu na saída um homem que lhe fez sinal e disse:
 - Você me chamou.
 Ele sabia que era o diabo, confie em mim, se você o olhar saberá que é ele.
 O diabo perguntou:
 - O que você deseja?
 Assustado Nero respondeu:
 - Quero ser famoso com a hipnose.
 O cramulhão:
 - Só isso?
 E o parvo:
 - Só.
 O demo deu uma tossida longa e fez que sim com a cabeça. Então Nero perguntou:
 - Qual é o preço? Minha alma?
 O diabo:
 - Também. Mas eu quero mais, eu quero almas inocentes.
 Nero pensou.
 "Pior do que está não pode ficar".
 E concordou.
 O diabo lhe soprou a testa e sumiu. E tudo mudou.

sábado, 15 de julho de 2017

Faixa 16




 1 – Ruptura¹


 - Eu não vou concordar nunca com essa merda!
 Segurava a foto da próxima capa incrédulo. Ela mostrava dois golfinhos nadando com uma moça de biquíni.
 Fred Fracasso não se conformava. Rud falou:
 - É mudança musical Fred. Aceita velho...
 Há algum tempo percebia que somente ele ainda andava com a jaqueta de couro surrada, os tênis detonados.
 Todos estavam diferentes.
 Cabelos lambidos da moda, detestável moda. Fred ainda era creditado com seu codinome. Mas era uma questão de tempo para que os patrões mudassem tudo.
 E a última coisa a ser mudada seria ele.
 Parecia um Sid Vicious num Coldplay.
 Uma roda e moshs num show da Enya.
 Ou seja...
 Ele era um peixe fora d'água. E desde quando aquele aquário deixou de ser seu?
 Agora ele estava ali com dois alienígenas que lembravam seus amigos.
 Onde estavam os piercings na cara de Dani Desastre? Onde estava o cabelo espetado e bizarro de Rud Ruína? Onde estavam as olheiras e os olhares vidrados dos dois?
 Fred mantinha suas olheiras e seu olhar vidrado, injetado ali.
 - Parece que nem o nome da banda se aplica mais a vocês, seus traíras!
 Fred saiu da sala. Dani o encontrou fora do prédio. Estava sentado num banco fumando um charuto vagabundo.
 A olhou com desprezo:
 - Se veio me convencer pode ir embora!
 Ela parou na frente dele:
 - Cresça Fred. Não dá para você pensar alto? Porra, não dá pra ganhar dinheiro de verdade daquele jeito.
 Ele arregalou os olhos:
 - Dani Desastre você está aí? Você disse porra. Bandas melosas não dizem porra! Eu sei que debaixo destas roupinhas da moda está uma baixista cabulosa.
 - As vezes você faz jus ao teu nome. Fred, faz isso por nós?
 - Dani... eu não faço música diluída.
 Ela sentou ao seu lado.
 - Fred, eu tenho uma filha agora. Não posso mais viver como uma porra-louca.
 - Dani.  Vocês colocaram golfinhos na capa. Golfinhos!
 Ela dá um tapa no ombro dele.
 - Para! Essa jogada vai dar certo, vai criar polêmica. É uma mudança radical cara. Eu e o Rud queremos muito isso. Até as composições estão prontas.
 - Aquelas merdas que eu ouvi na sala são as novas músicas? Eu nem participei de nada.
 Ela grita.
 - O senhor? O senhor estava com o nariz entupido. Com o braço recheado de agulhas! Não está nem aí pra nós Fred!
 Fala mais baixo.
 - Eu e o Rud fizemos até a parte das guitarras.
 - Isso está na cara. Não tinha nem um pouco de peso, nem uma sombra de distorção.
 - Nós sabíamos que não ia ser fácil com você.
 Fred traga o charuto, solta a fumaça e responde.
 - E eu sabia que este contrato com gravadora grande ia fazer isso com a gente.
 Dani segura a mão de Fred.
 - Você é nosso amigo, queremos você conosco.
 - Ou?
 - Evoluímos, aprendemos até o seu instrumento. Você entendeu, não é?
 Com o rosto em fúria.
 - Estão me chutando?
 Ela se levanta.
 - Pensa bem Fred.
 E vai embora, Fred grita.
 - Estão me chutando da banda que eu fundei!?


 A raiva habitual invadiu os sentidos e inundou o corpo. Era o que o impulsionava.
 Surgiu em uma infância tão ruim quanto o inferno e se apegou a ele. Depois de um tempo ela precisou que ele a despejasse, a descarregasse.
 A adolescência e a música. A mistura volátil que lhe foi entregue com amigos tão revoltados quanto ele.
 A banda, os codinomes e toda vertente de autodestruição possível.
 Anos de abusos e perigos. Brigas, confusões e agressões. A raiva precisa de alimento para existir.


 Dani quase morreu com uma overdose cinco anos atrás. Rud perdeu alguns dentes.
 E a raiva vai mudando de alvo, de direção.
 Raiva por ver outros amigos do mundo caótico morrendo.
 Por acabar com todo o dinheiro ganho comprando coisas que lhe faziam mal. Que roubavam sua energia.
 Dois anos atrás Dani recusou-se a dormir com ele novamente. Fred estranhou, viviam livres, sem obrigações com ninguém.
 Dani respondeu que estava apaixonada por Rud.
 E Fred sentiu raiva.
 Ela havia parado com a diversão, depois que ficou com Rud. O que Fred não percebia é que para seus amigos não havia mais diversão.
 Só sequelas.
 Para completar o quadro ela teve uma filha.
 E Fred sentiu raiva por se importar com isso. O contrato da gravadora chegou em meio ao caos da banda. Eles tinham vários fãs no submundo da música. Lotavam os shows.
 Mas os lugares para tocar escasseavam, os fãs transbordavam de raiva e quebravam os estabelecimentos.
 Os cachês mal pagavam os estragos.
 Ficaram famosos por isso.
 Uma gravadora grande cresceu os olhos, achou que a banda conseguiria o estrelato em mídias maiores.
 Assinaram o contrato.
 Com o dinheiro do adiantamento para produzir um novo disco, Rud e Dani procuraram outras sonoridades.
 E Fred se encheu de drogas.


 Meia hora depois entrou na sala de reuniões novamente. Todos esperavam uma reação explosiva.
 E ficaram surpresos com o que ele disse.
 - Tá bem! Eu quero fazer uma faixa para o disco.
 Rud e Dani olharam para o figurão da gravadora. O chefão se pronunciou:
 - Certo. Poderá ser um bônus: faixa 16.
 Fred olhou para baixo escondendo seu olhar de ódio.
 - E depois saio da banda.
 Ninguém manifestou única objeção. Saiu rápido da sala.
 Entre os dois integrantes restantes e o chefão ficou tudo acertado.
 - Será bom... um petisco para seus antigos fãs.

domingo, 2 de julho de 2017

Singular



“Ocasião que torna infiéis os prometidos”


 - Agora ela deu pra achar que eu vou abandoná-la. Você acredita?
 Omar encheu a mão de salgadinhos e respondeu.
 - Grávidas são assim mesmo. Elas ficam mais sensíveis e o escambau, o que você diz de forma simples vira a terceira guerra mundial.
 Leandro coçou o queixo.
 - Então você passou por isso quando a Amélia estava grávida?
 - Ô, ela achava que eu ia embora com a vizinha que só tinha dois dentes!
 Riram, Leandro olhava para a paisagem repetitiva. A vida estava nos eixos, emprego estável, filho a caminho, acabando a faculdade. Sempre quis ser pai, quando receberam o resultado do exame abriu um sorrisão.
 Tinha certeza que não iria deixá-la¹.

 A viagem de ônibus continuava. Omar empolgado, queria conversar sobre algo que lera.
 - Quem escapou disse que as luzes se apagam, ainda fico com isso na cabeça, é como uma bateria sem carga.
 Leandro concordou com a cabeça, Omar prosseguiu.
 - Outros disseram enxergar uma luz distante em um breu, um farol moribundo.
 A metáfora de Omar o levou a pensar em Tereza, sua mulher foi o farol de sua vida turbulenta.

 Três horas da manhã.
 Um ruído era o sinal nas trevas do quarto, Tereza estava chorando, ele a abraçou forte.
 - Estou aqui, está tudo bem.
 As lágrimas escorriam pelo rosto e molhavam o peito de Leandro.
 - Com o que sonhou linda?
 Ela comprimiu-se nos braços dele, não respondeu de imediato. Ele a conhecia como a palma da mão e lhe deu tempo.
 - Sabia que ia me deixar, foi embora com uma loira bonita! Eu não sou bonita.
 Ela chorava baixinho.
 - Eu não vou te deixar, já tenho tudo o que eu quero do mundo.
 A apertou, tocando o barrigão.

 - Estou falando sozinho aqui meu?
 Leandro voltou a si.
 - Desculpe Omar.
 - Ainda pensando na Tereza né? Você ama ela cara, não entre na paranoia. Lembre-se do que eu disse: grávidas são sensíveis.
 - Eu... eu não, eu nunca pensei em trai-la sabe? Como foi que ela colocou isso na cabeça?
 - Leandro, não precisa me convencer. Sei que nem pensa em fazer cachorrada com a Tereza. A sua mulher só teve um pesadelo! É só um pesadelo cara! Não alimente a ideia que não faz bem pra nenhum dos dois. Mudamos de assunto; eu acho que trabalhamos muito longe meu velho.
 Leandro sorriu, Omar podia ter razão. Tentar apagar um incêndio com jornais não daria certo, retomou a conversa.
 - Continue o assunto de que falava antes.
 Omar aprovou com brilho nos olhos.
 - Sobre o filme mental. Nossas melhores cenas em um compilado pessoal especial. Melhor que Copolla, Scorcese ou qualquer grande diretor². Nossas maiores conquistas, desejos, decepções, saudades e amores. Sempre achei esta ideia mais elegante. O que acha?
 - Gosto mais de outra ideia.
 - Qual?
 Leandro não respondeu, diante dele uma loira bonita procurava um lugar para sentar. Vinha sorrindo e era como a descrição de Tereza.