Do alto do prédio
sede da empresa químico-farmacêutica¹ o homem olha.
Os tons mudam da raiz
ao topo, lá em cima o predominante cinza².
Ele se serve da
bebida na mesa e olha pela grande janela aberta do arranha-céu. Divaga com o
copo na mão, olha transtornado para baixo.
- Eu queria ser como
eles.
- Daqui de cima
parecem minúsculas formigas operárias que trabalham para senhores como eu. Suas
vidas possuem regras simples: colocar o pão na mesa, reunir pessoas queridas,
diversões dentro dos limites monetários, amar.
Alheios a minha presença. Eles me olham nos jornais como notícia
momentânea. Sou um assunto fraco nas conversas. Facilmente esquecido.
Vai até a mesa e
serve mais bebida. Volta a olhar o abismo.
- Eu sou o desvio de
caminho de suas vidas básicas. Com única decisão posso esmagar milhares de
futuros, milhares de sonhos dos que estão lá embaixo. Crio crises em suas cadeias
simples. Posso alimentar os males de toda uma geração. Poder com uma decisão.
Ele sorri. O rosto
rapidamente se contrai amargo.
- Sobra somente a
satisfação destrutiva para quem está no topo. Criamos corporações e empresas
gigantescas, movemos a vida das formigas. Com o dinheiro-alimento, movem suas
vidas transformando. Multiplicando-se. Enchendo as ruas e alavancando-me a
prédios maiores. Fico cada vez mais alto, cada vez mais distante. Para me
lembrar sempre que não sou como eles.
Deposita o copo na
mesa, vai novamente até a janela. Amargurado.
- Contentam-se com
pouco; abrem seus melhores sorrisos com beijos...
Em tom mais alto:
- Eu conheci o mundo
inteiro! Eles se importam com a viagem que fizeram ao parente de outra cidade,
tenho dinheiro para forrar minha casa! Eles só querem que sobre o suficiente
para pagar as contas.
Coloca as mãos nos
bolsos, olha triste o vazio.
- Riem; aproveitam a
curta vida. Interagem expondo minha fragilidade. Eu sou um homem poderoso.
Retira um cigarro do
bolso e o coloca na boca. Faz menção de acendê-lo com o isqueiro. Joga o
cigarro pela janela. Apoia a mão na beirada.
- O abismo é aqui;
não lá embaixo. As esperanças acabam quando se está tão alto. O solo é a
segurança, ele te faz lembrar que você pertence a algo.
Ele chora leve.
- Vidas notáveis.
Pessoas que eu adoraria conhecer, sujeitos que se unem por causas. Quando
nascemos a vida nos invade com cheiros, com sons, com visões para nos ajudar a
compreender seu propósito. Isso não se pode perder durante o tempo, quanto mais
distanciamos menos vivemos. O abismo de cada um deles é onde estou. É onde a
humanidade acaba.
Joga o maço de
cigarros lá embaixo.
- Meus amigos de
fachada são como eu. As pessoas somente se aproximam de alguém nesta posição
quando querem algo.
O vento açoita os
cabelos.
- Ela me abriu os
olhos quando foi embora. Foi viver como eles e ainda sinto o calor de seu beijo
de despedida. Disse que eu estava cada vez mais frio. Já se passaram dez anos e
o calor do beijo permanece em meus lábios.
Toca os lábios
relembrando.
- Já é tarde demais
para mim, a distância é grande demais. Há quanto tempo não sinto o amor
verdadeiro de alguém? Há quanto tempo não se importam verdadeiramente comigo?
Há quanto tempo não me importo com alguém?
Toca a beirada
novamente.
- É tarde. Não tenho
tempo para encurtar a distância aos poucos, quero tudo ou nada! Eu queria ser
como eles...
Chora.
- Devo alcançá-los,
abraçá-los.
Desajeitado sobe ao
parapeito.
- Abraçá-los. Devo
alcançá-los, me misturar a eles.
O homem salta.
Mistura-se a multidão
pasma, as sirenes tocam.
"Conto muito foda! É triste, é intenso, é real!"
Carla Garcia, professora, comentário postado em 15/06/2009.
Extras e referências:
1 - Xemox, complexo químico inspirada em uma fábrica que joga uma nuvem pútrida em uma cidade do interior de SP. A Xemox assombra vários contos do autor, exemplos: O único, Quando a esmola é demais.
2 - Novamente a cor cinza retrata algum sentimento negativo assim como em A maquete.
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