Citações

"Escabroso, delirante e assustador! Perfeito!" Por Drauzio Marqezini em 12/04/2012 no site Recanto das Letras.

terça-feira, 20 de junho de 2017

Amor em notas




1 - Conta o poeta


 O pessoal se reunia na praça para ouvir o poeta declamar suas poesias. Estranhamente ele diz a todos:
 - Hoje não recitarei minhas poesias. Mas contarei uma estória que é a pura poesia.
 E começou a contar.
 " Havia um casal perfeito formado na cidade, uma união de alquimia pura. Ela era uma poetisa de renome. Ele um multi-instrumentista premiado. Conheceram-se em um encontro de belas artes e nunca mais se largaram.
 Já se amavam antes de se conhecer pessoalmente, ela escrevia suas poesias escutando os discos que ele fizera. Ele lia as poesias dela e realizava composições.
 Tudo estava destinado.
 O casamento aconteceu pouco depois do primeiro beijo. Sentiam que pertenciam ao outro. A alegria dos dois transbordava e a festa foi luxuosa.
 Foram morar numa casa enorme e bela. Com um jardim imenso e quartos para a música e a poesia.
 Durante essa época lançaram suas mais conhecidas obras. E com o devido sucesso eles melhoraram ainda mais sua situação financeira.
 Difícil ver pessoas mais felizes que Rosa e Proteus. Tinham alguns empregados na vasta casa, arrumadeiras, mordomo e até um jardineiro.
 E o tempo passou, logo completaram cinco anos de casamento. Proteus tinha uma surpresa para Rosa.
 Após todos saírem, os convidados do aniversário e empregados, Proteus pegou seu violino.
 - Essa é tua música Rosa...
 E tocou a composição mais bela do mundo, a poetisa pôs-se a bailar. Seus olhos marejavam em felicidade. Nunca havia ouvido algo tão bonito, tão forte e ao mesmo tempo tão sentimental.
 - É linda Proteus. É a música mais linda que já ouvi.
 Proteus chorou após a execução, enxugou as lágrimas e disse.
 - Chama-se Réquiem para Rosa¹, um réquiem para a vida, enquanto essa música existir você será imortal nas notas.
 Beijaram-se fortemente.
 Da janela alguém observava o casal e de forma suja... cobriu as plantas do jardim com "amor solitário"."



 2 - Réquiem premiado


 "Rosa insistiu que Proteus gravasse a música e ele assim fez. O sucesso foi imediato. Foi agraciado com diversos prêmios pela cidade.
 E um hábito se formou na casa, todas as noites Proteus tocava a música para sua amada. Compareciam juntos em várias cerimônias, ele nas noites de autógrafos dela, ela nos festivais dele.
 Mas Rosa padeceu de febre um dia e Proteus teria que receber um prêmio em outra cidade.
 - Eu não vou. Você é mais importante.
 Disse mas ela respondeu firme.
 - Vai sim, é só uma febre boba. Você tem que buscar esse prêmio, é seu mérito. E o melhor é que sei que essa música foi feita para mim.
 Relutante tentou conversar. Ela foi incisiva.
 - É só uma noite querido! Logo estará comigo de novo.
 Ele lhe deu um longo beijo e sussurrou em seu ouvido:
 - Não ficarei até amanhã cedo, de madrugada dou um jeito e volto pra cá.
 E saiu...
 Foi até a cidade de carro e logo estava dentro do teatro.
 Recebeu uma salva de palmas e honrarias diversas. Estavam presentes diversos nomes da cultura.
 Proteus deveria executar a música no palco antes de receber o prêmio. Só pensava em Rosa. Saiu então daquelas conversas que o sufocavam e buscou a liberdade do palco.
 Subiu ao palco e levou o Stradivarius² ao queixo, ia começar a tocar e pensou.
 "Uma hora dessas eu estaria tocando para ela."
 Começou a ofegar, tomou até água para melhorar, mas não adiantou.
 Sentiu uma agonia intensa.
 - Toque Proteus.
 Disse um amigo da plateia, o mesmo amigo acrescentou logo após:
 - Proteus, você está bem?
 Ele sentiu falta de ar em um suplício crescente então, de um gesto, estourou todas as cordas do violino.
 - Não... não... Rosa... Rosa!!
 Chorava e gritava como se tivesse perdido parte do corpo.
 Como se tivessem arrancado parte de sua alma.
 Haviam mais de quinhentas pessoas no teatro, mesmo assim, Proteus era o homem mais sozinho deste mundo.”


 3 - O jardim e a Rosa


 " Sozinha no quarto após Proteus sair Rosa tentou dormir, mas não conseguia. Pensou em chamar Selma, que era uma das empregadas para conversar. Mas lembrou-se que era tarde e todos estavam dispensados.
 Tudo lembrava Proteus, cada parede, cada canto, cada toque em cada coisa.
 "Não faz nem duas horas que ele saiu e estou assim".
 Pensou e riu levemente, só pensava em Proteus. Com um pouco de febre saiu então daquele quarto que a sufocava sem ele. Buscou a liberdade do jardim.
 Chegou então ao jardim onde passava horas escrevendo. A noite era fresca.
 "Uma hora dessas ele estaria tocando pra mim."
 Foi aí que viu o outro.
A imagem a espantou.
O bruto homem estava nú com a tesoura de jardinagem nas mãos.
 Ele correu pela grama de encontro a ela, estava ansioso pois havia passado horas no quartinho esperando o momento.
 Ela reconheceu o jardineiro e começou a correr, ofegava em meio a fuga. De um salto, ele agarrou a perna.
 "Ele estaria tocando pra mim agora..."
 Foi só o que pensou.
 A dor era intensa, o estupro foi rápido e brutal.
 Rosa não conseguia respirar.
 Ele retirou-se do ventre da bela poetisa e a deixou no chão.
 Então, pegou a tesoura.
 Rosa sentiu a esperança arrebentar e gritou com todas as forças.
 - Não... não... Proteus... Proteus!!


 Duas horas se passaram e o carro de Proteus cruzou velozmente as estradas.
 Ao chegar ao jardim de casa clamava:
 - Não por favor... não...
 Viu então a bela Rosa e agarrou o cadáver da esposa como se isso a fizesse voltar.


 4 - Miragem


 As autoridades procuraram sem sucesso o jardineiro.
 Rosa não havia sido a primeira vítima.
 Proteus caiu num mundo de depressão e não mais saiu, não mais participou de festivais e nem sorria mais.
 Não se animava para nada. Nem tocava mais. Começou a perder sua fortuna gradativamente.
 Por dias passava olhando para o nada, procurando vestígios de Rosa. A comida parecia sempre sem graça e esquecia-se de sua integridade física.
 Uma febre o assaltou certa vez e levantou-se na madrugada. Na escuridão viu um vulto de mulher.
 - Rosa...
 Correu até o vulto e tropeçou em algo... acendeu a luz e viu a caixa do violino.
 - Ela quer que eu toque.
 Sabia de cor a música e começou a tocar o Réquiem para Rosa.
 Uma miragem indistinta ia ficando nítida à sua frente. Sim; era Rosa bailando diante de Proteus!
 Ele largou o violino e tentou tocá-la mas a miragem sumiu... desesperado começou a tocar novamente.
 E ela reapareceu em outros passos de dança e olhava para ele sorrindo. Não era miragem. Ele tocou a noite inteira só para vê-la e então caiu no sono exausto.
 Acordou no outro dia e começou a tocar novamente. Ele via Rosa. Sentia-se um pouco melhor e gradativamente voltou a ir aos festivais.
 E até nos palcos vazios era tocar o Réquiem e a bela poetisa aparecia para ele.
 Os empregados da casa até acostumaram a ouvir todo dia a mesma música.
 Foi até uma cidade distante certa vez para participar de um festival. Por acaso, não mais que o acaso, viu quem matara sua Rosa atravessando a rua.
 Esfregou os olhos e parou o carro, não havia dúvida. Proteus tinha certeza.
Era ele.
Passeando impune naquela tarde morna.
 Ele piscou os olhos e o perdeu de vista. Parou o carro próximo do teatro e não entrou.
 Foi para um beco e tocou o violino, ela apareceu o olhando séria. Enquanto tocava ele disse:
 - Fala comigo.
 Ela ficou o olhando como se fosse um filme mudo.
 - Fala por favor... o que eu faço!?
 Ela baixou o olhar.
 - Se você não vai dizer nada eu vou matar aquele desgraçado. Quer você queira ou não...
 E parou de tocar, entrou no carro e partiu. Rosa permaneceu no beco tentando ser ouvida.
 Seus lábios desenhavam a palavra não no ar.
 E depois ela sumiu.


 5 - Pela segunda vez


 Retirou o revólver que carregava sempre no porta luvas e circulou pelas ruas do bairro. Pedia para vê-lo de novo e fazer o que a polícia não conseguiu.
 E rodou a noite inteira na pequena cidade. O dia raiou e ele encheu o tanque para continuar.
 Viu então o assassino vestido com seu macacão de jardinagem andando na rua passou a segui-lo. Viu o jardineiro indo para uma casa.
 A dona da casa saiu com a filha para recepcioná-lo. A menina parecia ter uns quinze anos. Ele fez o serviço rápido, talvez pensasse em fazer uma visita a casa depois. Quando ia saindo, filha e mãe disseram:
 - Tchau Tomáz³.
 Proteus viu e ouviu tudo aquilo, Tomáz não foi o nome utilizado por ele em sua cidade. Passou a seguir o sujeito, ele devia estar voltando para casa.


 E era isso mesmo. Proteus ficou um tempo em frente da casa e depois desceu do carro.
 A arma parecia parte de sua mão.
 Proteus bateu na porta.
 - Já vou...
 O jardineiro abriu a porta e deparou com uma arma apontada em seu rosto.
 - Seu desgraçado!
 Rapidamente afastou a arma e socou Proteus na cara. A arma caiu no chão. Proteus tentou brigar por ela mas o jardineiro levou a melhor.
 E apontou a arma para Proteus.
 - Agora vou fazer um serviço completo.
 Sentindo que ia morrer Proteus saltou em direção ao jardineiro e um tiro o atingiu.
 Caíram os dois ao chão e Proteus recuperou a arma, sem pensar mais atirou três vezes na face do assassino.


 A polícia tinha provas demais na casa do jardineiro e os policiais solidarizaram com Proteus.
 - Eu teria feito a mesma coisa. Diz que foi legítima defesa que fica tudo bem.
 Diziam os policiais. Ainda atônito viu o médico examinar seu braço. Disse ao doutor:
 - Não é nada grave, é? Eu sou instrumentista.
 O doutor:
 - Vamos ter que ir ao hospital.
 Lá recebeu a notícia.
 Ele não conseguiria tocar mais seu violino.
 E sentiu que Rosa foi tirada dele.
Pela segunda vez...


 6 - Rico


 "Sem o violino. Não tenho Rosa”.
 Ele pensou nisso e desfez-se em lágrimas. Passaram-se meses e ele começou a doar tudo o que tinha.
 Nada mais tinha valor para ele, foi de coração destruído viver nas ruas.
 Mas um dia teve uma idéia brilhante.
Não era o violino; era o Réquiem.
 Precisava testar essa idéia e começou a pedir dinheiro nas ruas. E com o pouquinho de dinheiro que conseguiu entrou numa loja de inutilidades e comprou.
 E digo a vocês.
 Se um dia virem um mendigo nas ruas, tocando uma flautinha de plástico sem valor, saibam que ali sentado sujo e maltrapilho, olhando uma linda poetisa só para seus olhos, está o homem mais rico do mundo!"



Dedicado a Safo.





"É uma poesia? É uma tragédia? É um suspense? É tudo isso e é um conto perfeito. Parabéns! Parabéns!"
Drauzio Marqezini, bibliotecário, leitor do autor desde 2009.


Extras e referências:


1 - Geralmente uma prece litúrgica feita para honrar os mortos o Réquiem aqui ganha contornos irônicos. Tudo no conto remete a destruição de algo belo e renascimento.

2 - Stradivarius: marca de violinos reconhecidos mundialmente por sua qualidade e beleza.


3 - Jardineiro: assassino serial com grande número de vítimas, neste conto conhecemos um pouco mais de seu modus operandi e seu verdadeiro nome, Tomáz. Apareceu a primeira vez no conto Curiosidade.



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