1 - Conta o poeta
O pessoal se reunia
na praça para ouvir o poeta declamar suas poesias. Estranhamente ele diz a
todos:
- Hoje não recitarei
minhas poesias. Mas contarei uma estória que é a pura poesia.
E começou a contar.
" Havia um casal
perfeito formado na cidade, uma união de alquimia pura. Ela era uma poetisa de
renome. Ele um multi-instrumentista premiado. Conheceram-se em um encontro de
belas artes e nunca mais se largaram.
Já se amavam antes de
se conhecer pessoalmente, ela escrevia suas poesias escutando os discos que ele
fizera. Ele lia as poesias dela e realizava composições.
Tudo estava
destinado.
O casamento aconteceu
pouco depois do primeiro beijo. Sentiam que pertenciam ao outro. A alegria dos
dois transbordava e a festa foi luxuosa.
Foram morar numa casa
enorme e bela. Com um jardim imenso e quartos para a música e a poesia.
Durante essa época
lançaram suas mais conhecidas obras. E com o devido sucesso eles melhoraram
ainda mais sua situação financeira.
Difícil ver pessoas
mais felizes que Rosa e Proteus. Tinham alguns empregados na vasta casa,
arrumadeiras, mordomo e até um jardineiro.
E o tempo passou,
logo completaram cinco anos de casamento. Proteus tinha uma surpresa para Rosa.
Após todos saírem, os
convidados do aniversário e empregados, Proteus pegou seu violino.
- Essa é tua música
Rosa...
E tocou a composição
mais bela do mundo, a poetisa pôs-se a bailar. Seus olhos marejavam em
felicidade. Nunca havia ouvido algo tão bonito, tão forte e ao mesmo tempo tão
sentimental.
- É linda Proteus. É
a música mais linda que já ouvi.
Proteus chorou após a
execução, enxugou as lágrimas e disse.
- Chama-se Réquiem para Rosa¹, um réquiem para a
vida, enquanto essa música existir você será imortal nas notas.
Beijaram-se
fortemente.
Da janela alguém
observava o casal e de forma suja... cobriu as plantas do jardim com "amor
solitário"."
2 - Réquiem premiado
"Rosa insistiu
que Proteus gravasse a música e ele assim fez. O sucesso foi imediato. Foi
agraciado com diversos prêmios pela cidade.
E um hábito se formou
na casa, todas as noites Proteus tocava a música para sua amada. Compareciam
juntos em várias cerimônias, ele nas noites de autógrafos dela, ela nos
festivais dele.
Mas Rosa padeceu de
febre um dia e Proteus teria que receber um prêmio em outra cidade.
- Eu não vou. Você é
mais importante.
Disse mas ela
respondeu firme.
- Vai sim, é só uma
febre boba. Você tem que buscar esse prêmio, é seu mérito. E o melhor é que sei
que essa música foi feita para mim.
Relutante tentou
conversar. Ela foi incisiva.
- É só uma noite
querido! Logo estará comigo de novo.
Ele lhe deu um longo
beijo e sussurrou em seu ouvido:
- Não ficarei até
amanhã cedo, de madrugada dou um jeito e volto pra cá.
E saiu...
Foi até a cidade de
carro e logo estava dentro do teatro.
Recebeu uma salva de
palmas e honrarias diversas. Estavam presentes diversos nomes da cultura.
Proteus deveria
executar a música no palco antes de receber o prêmio. Só pensava em Rosa. Saiu
então daquelas conversas que o sufocavam e buscou a liberdade do palco.
Subiu ao palco e
levou o Stradivarius² ao queixo, ia começar a tocar e pensou.
"Uma hora dessas
eu estaria tocando para ela."
Começou a ofegar,
tomou até água para melhorar, mas não adiantou.
Sentiu uma agonia
intensa.
- Toque Proteus.
Disse um amigo da
plateia, o mesmo amigo acrescentou logo após:
- Proteus, você está
bem?
Ele sentiu falta de
ar em um suplício crescente então, de um gesto, estourou todas as cordas do
violino.
- Não... não...
Rosa... Rosa!!
Chorava e gritava
como se tivesse perdido parte do corpo.
Como se tivessem
arrancado parte de sua alma.
Haviam mais de
quinhentas pessoas no teatro, mesmo assim, Proteus era o homem mais sozinho
deste mundo.”
3 - O jardim e a Rosa
" Sozinha no
quarto após Proteus sair Rosa tentou dormir, mas não conseguia. Pensou em
chamar Selma, que era uma das empregadas para conversar. Mas lembrou-se que era
tarde e todos estavam dispensados.
Tudo lembrava Proteus,
cada parede, cada canto, cada toque em cada coisa.
"Não faz nem
duas horas que ele saiu e estou assim".
Pensou e riu
levemente, só pensava em Proteus. Com um pouco de febre saiu então daquele
quarto que a sufocava sem ele. Buscou a liberdade do jardim.
Chegou então ao
jardim onde passava horas escrevendo. A noite era fresca.
"Uma hora dessas
ele estaria tocando pra mim."
Foi aí que viu o
outro.
A imagem a espantou.
O bruto homem estava nú com a tesoura de jardinagem nas
mãos.
Ele correu pela grama
de encontro a ela, estava ansioso pois havia passado horas no quartinho
esperando o momento.
Ela reconheceu o
jardineiro e começou a correr, ofegava em meio a fuga. De um salto, ele agarrou
a perna.
"Ele estaria
tocando pra mim agora..."
Foi só o que pensou.
A dor era intensa, o
estupro foi rápido e brutal.
Rosa não conseguia
respirar.
Ele retirou-se do
ventre da bela poetisa e a deixou no chão.
Então, pegou a
tesoura.
Rosa sentiu a
esperança arrebentar e gritou com todas as forças.
- Não... não...
Proteus... Proteus!!
Duas horas se
passaram e o carro de Proteus cruzou velozmente as estradas.
Ao chegar ao jardim
de casa clamava:
- Não por favor...
não...
Viu então a bela Rosa
e agarrou o cadáver da esposa como se isso a fizesse voltar.
4 - Miragem
As autoridades
procuraram sem sucesso o jardineiro.
Rosa não havia sido a
primeira vítima.
Proteus caiu num
mundo de depressão e não mais saiu, não mais participou de festivais e nem
sorria mais.
Não se animava para
nada. Nem tocava mais. Começou a perder sua fortuna gradativamente.
Por dias passava olhando
para o nada, procurando vestígios de Rosa. A comida parecia sempre sem graça e
esquecia-se de sua integridade física.
Uma febre o assaltou
certa vez e levantou-se na madrugada. Na escuridão viu um vulto de mulher.
- Rosa...
Correu até o vulto e
tropeçou em algo... acendeu a luz e viu a caixa do violino.
- Ela quer que eu
toque.
Sabia de cor a música
e começou a tocar o Réquiem para Rosa.
Uma miragem
indistinta ia ficando nítida à sua frente. Sim; era Rosa bailando diante de
Proteus!
Ele largou o violino
e tentou tocá-la mas a miragem sumiu... desesperado começou a tocar novamente.
E ela reapareceu em
outros passos de dança e olhava para ele sorrindo. Não era miragem. Ele tocou a
noite inteira só para vê-la e então caiu no sono exausto.
Acordou no outro dia
e começou a tocar novamente. Ele via Rosa. Sentia-se um pouco melhor e
gradativamente voltou a ir aos festivais.
E até nos palcos
vazios era tocar o Réquiem e a bela
poetisa aparecia para ele.
Os empregados da casa
até acostumaram a ouvir todo dia a mesma música.
Foi até uma cidade
distante certa vez para participar de um festival. Por acaso, não mais que o
acaso, viu quem matara sua Rosa atravessando a rua.
Esfregou os olhos e
parou o carro, não havia dúvida. Proteus tinha certeza.
Era ele.
Passeando impune naquela tarde morna.
Ele piscou os olhos e
o perdeu de vista. Parou o carro próximo do teatro e não entrou.
Foi para um beco e
tocou o violino, ela apareceu o olhando séria. Enquanto tocava ele disse:
- Fala comigo.
Ela ficou o olhando
como se fosse um filme mudo.
- Fala por favor... o
que eu faço!?
Ela baixou o olhar.
- Se você não vai
dizer nada eu vou matar aquele desgraçado. Quer você queira ou não...
E parou de tocar,
entrou no carro e partiu. Rosa permaneceu no beco tentando ser ouvida.
Seus lábios desenhavam
a palavra não no ar.
E depois ela sumiu.
5 - Pela segunda vez
Retirou o revólver
que carregava sempre no porta luvas e circulou pelas ruas do bairro. Pedia para
vê-lo de novo e fazer o que a polícia não conseguiu.
E rodou a noite
inteira na pequena cidade. O dia raiou e ele encheu o tanque para continuar.
Viu então o assassino
vestido com seu macacão de jardinagem andando na rua passou a segui-lo. Viu o jardineiro
indo para uma casa.
A dona da casa saiu
com a filha para recepcioná-lo. A menina parecia ter uns quinze anos. Ele fez o
serviço rápido, talvez pensasse em fazer uma visita a casa depois. Quando ia
saindo, filha e mãe disseram:
- Tchau Tomáz³.
Proteus viu e ouviu
tudo aquilo, Tomáz não foi o nome utilizado por ele em sua cidade. Passou a
seguir o sujeito, ele devia estar voltando para casa.
E era isso mesmo. Proteus
ficou um tempo em frente da casa e depois desceu do carro.
A arma parecia parte
de sua mão.
Proteus bateu na
porta.
- Já vou...
O jardineiro abriu a
porta e deparou com uma arma apontada em seu rosto.
- Seu desgraçado!
Rapidamente afastou a
arma e socou Proteus na cara. A arma caiu no chão. Proteus tentou brigar por
ela mas o jardineiro levou a melhor.
E apontou a arma para
Proteus.
- Agora vou fazer um
serviço completo.
Sentindo que ia
morrer Proteus saltou em direção ao jardineiro e um tiro o atingiu.
Caíram os dois ao
chão e Proteus recuperou a arma, sem pensar mais atirou três vezes na face do
assassino.
A polícia tinha
provas demais na casa do jardineiro e os policiais solidarizaram com Proteus.
- Eu teria feito a
mesma coisa. Diz que foi legítima defesa que fica tudo bem.
Diziam os policiais.
Ainda atônito viu o médico examinar seu braço. Disse ao doutor:
- Não é nada grave,
é? Eu sou instrumentista.
O doutor:
- Vamos ter que ir ao
hospital.
Lá recebeu a notícia.
Ele não conseguiria
tocar mais seu violino.
E sentiu que Rosa foi
tirada dele.
Pela segunda vez...
6 - Rico
"Sem o violino.
Não tenho Rosa”.
Ele pensou nisso e
desfez-se em lágrimas. Passaram-se meses e ele começou a doar tudo o que tinha.
Nada mais tinha valor
para ele, foi de coração destruído viver nas ruas.
Mas um dia teve uma
idéia brilhante.
Não era o violino; era o Réquiem.
Precisava testar essa
idéia e começou a pedir dinheiro nas ruas. E com o pouquinho de dinheiro que
conseguiu entrou numa loja de inutilidades e comprou.
E digo a vocês.
Se um dia virem um
mendigo nas ruas, tocando uma flautinha de plástico sem valor, saibam que ali
sentado sujo e maltrapilho, olhando uma linda poetisa só para seus olhos, está
o homem mais rico do mundo!"
Dedicado a Safo.
"É uma poesia? É uma tragédia? É um suspense? É tudo isso e é um conto perfeito. Parabéns! Parabéns!"
Drauzio Marqezini, bibliotecário, leitor do autor desde 2009.
Extras e referências:
1 - Geralmente uma prece litúrgica feita para honrar os mortos o Réquiem aqui ganha contornos irônicos. Tudo no conto remete a destruição de algo belo e renascimento.
2 - Stradivarius: marca de violinos reconhecidos mundialmente por sua qualidade e beleza.
3 - Jardineiro: assassino serial com grande número de vítimas, neste conto conhecemos um pouco mais de seu modus operandi e seu verdadeiro nome, Tomáz. Apareceu a primeira vez no conto Curiosidade.
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