1 - Longe da vista do
mundo
- Vou contar pra você
o que aconteceu...
"Aqueles dois só
queriam um dia de descanso, uma visita ao bar parecia uma boa idéia.
E ninguém no mundo
"normal" espera por um sequestro.
Na saída do bar foram
dominados e encapuzados. Jogados em um porta-malas.
Por quê um sequestro?
Fausto e Oscar.
Amigos inseparáveis
até mesmo no sofrimento.
Foram retirados do
porta-malas num paradeiro desconhecido. Retiraram tudo o que lhes seria útil.
Removeram os capuzes,
Fausto e Oscar fitaram uma escuridão tão infindável quanto fria.
- O que vocês querem?
Dinheiro?
Perguntou Oscar para
a escuridão, um dos indivíduos ocultos respondeu:
- Se tudo der certo
tiramos vocês daí.
Foram empurrados, a
queda foi grande. Ao atingir o solo Fausto quebrou o tornozelo esquerdo.
Oscar feriu a testa.
Estavam abandonados
em um buraco de paredes concretadas lisas. Lá embaixo não havia comida, água ou
cobertores.
Grandes amigos
feridos.
- Nós vamos sair dessa.
As horas passam, a
agonia traz companhia da fome e da sede. Especulam sobre o resgate que seria
solicitado, para quem?
Fausto lembra-se do
pai inválido num colchão sujo do asilo. O mesmo inválido que em seus tempos
áureos costumava usar o cinto para ensinar lições.
A mãe era muda sem
possuir deficiência alguma, distante e ausente. Morreu sem causar estardalhaço,
dormindo.
Fora daquele buraco
não possuía ninguém.
Oscar lembra-se da
rua, fugiu de casa com doze anos e não voltou. Contrariou estatísticas e ainda
estava vivo.
Saiu do grande vazio
do seio familiar e buscou o vazio eterno da rua. Seria melhor que rostos
estranhos o pudessem fazer mal, não toleraria mais que pessoas de sua família o
fizessem trabalhar. Ou as visitas noturnas do seu tio.
Fora daquele buraco
não possuía ninguém.
Se corroíam com as
lembranças e o silêncio. Os pulmões cansados de gritar.
Cai a noite, a
estação traz a chuva.
Abençoada chuva.
Fausto e Oscar bebem
água da chuva das paredes lisas. Preciosa chuva, aguentariam a sede por hora.
A temperatura cai
rapidamente.
Maldita chuva.
Encharcados, morrendo
congelados. Esfregam os corpos para diminuir a sensação.
O cheiro, um odor
forte que sentiram desde que aterrissaram ali os enchia de horror.
Era um cheiro de
morte.
Alguém havia morrido
naquele lugar.
2 - Execução
"Na manhã que se
seguiu entraram em um consenso. Se tratava de uma execução.
Com a pouca luz que
entrava pela abertura viram seus rostos abatidos.
Começaram a pensar.
"Nós temos
inimigos? Quem faria isso? Devemos dinheiro para alguém?"
Não tinham nada que
alguém pudesse querer, pelo menos no que se lembravam.
Seria um modo
horrível de morrer.
Era necessário
procurar uma causa para não enlouquecer. Afinal, sempre precisamos culpar
alguém.
O pé esquerdo de
Fausto estava inchado, o menor movimento lhe causava dor intensa. Oscar
pressionava os dedos na ferida em sua testa. Precisava de uns dez pontos no
mínimo.
- Nós vamos morrer
aqui.
Conclusivo.
Relembram de sua
amizade, suas histórias. Enquanto ainda tinham sanidade para isso.
Se viraram nas ruas
juntos, trabalharam em pequenos acertos.
Tentaram escalar as
paredes e era impossível.
Fausto sobreviveu ao
braço pesado do pai.
Oscar manteve-se
inteiro em meio ao vazio.
Já ali, não havia
esperança.
O dia passa penoso, a
noite é novamente gelada.
"Nós temos
inimigos?""
3 - Razões para o
logro
"Procuram
rostos, Oscar começa:
- O velho turco
sempre odiou a gente.
Fausto afirma com a
cabeça.
- Pra ele não seria
difícil arranjar isso, dinheiro compra tudo.
Fausto discorda:
- O velho turco
sempre odiou a gente; mas ele não faria isto. Está inútil agora.
Se calam.
Fausto rompe o
silêncio.
- Agora o Lucão...
aquele sujeito é casca. E você foi para os finalmentes com a prima dele.
Oscar limpa o sangue
da testa:
- Só uma vez. Ele nem
sabe de nada...
- E como é que você
vai saber?
- Eu...
- Você não sabe nada
porra!
E a estranheza da
situação muda os espíritos. A fome violenta o corpo.
Nas cabeças
torturadas os culpados eram encontrados.
Para Oscar, o culpado
era Fausto.
Para Fausto, o
culpado era Oscar.
E o olhar estava
presente. Os deixe exauridos, com fome, desconfiados.
E eles se olharão
como inimigos."
4 - Inimigos
"Iriam morrer,
disso tinham certeza. Então porque não elucidar o caso?
Criar uma explicação.
Fausto levantou-se
com dificuldade, o tornozelo quebrado doía como o inferno. Olhou o outro
apático e disse:
- Acho que o Lucão
fez isso. Você não devia ter feito aquela merda!
Oscar escorou-se na
parede e se levantou:
- Então a culpa é do
Oscar! Como sempre, não é Fausto? Esqueceu que você fez merda também? Três
merdas pra falar a verdade.
Fausto avançava
cambaleando.
- Eu não tive
escolha.
- Não? Você gostou.
- Cala a boca!
Oscar não se
controlava:
- Gostou sim, se não
fosse eu você não parava.
- Agora eu vou te
arrebentar!
- Então vem. Manco
filho da puta!
Fausto era maior, um
tanque de raiva exausto indo pra cima de Oscar.
Oscar, mais rápido,
se esquivou e empurrou Fausto. Com o tornozelo ferido Fausto caiu pesadamente.
Aproveitando-se da situação
Oscar começa a chutá-lo.
- Agora vamos saber
quem é o fodão daqui!"
5 - Vilões
"Oscar não bateu
por muito tempo. A fome o deixou fraco, teve de se sentar para não cair.
Perderam a noção do
tempo em que estavam confinados.
- A gente é amigo...
Fausto revirava-se no
chão, deu o bote agarrando as pernas de Oscar.
Conseguiu chegar ao
pescoço. Com uma mão apertava, com a outra socava com a força que ainda tinha.
Gritava:
- Seu estuprador de
merda! A menina gostava de você.
Numa pausa da surra,
Oscar soltou:
- Unnhhh... ela não
queria liberar... ela nem me viu, eu tava de máscara... o Lucão não sabe...
Para!
Fausto olhava o rosto
destroçado no chão e ficou desatento. Oscar aproveitou que o agressor estava
ajoelhado em cima de si e torceu o tornozelo quebrado.
-
Ahhhhhhhhhhhhhhhh!!!!
Oscar zombou.
- Seu doente. Eu tive
de segurar você. Atirou na cabeça dos três moleques do turco.
No chão Fausto
gritava:
- Eu não tive
escolha, eles queriam me matar.
- Sua cabecinha acha
isso.
Oscar se levantou e
levou um chute nas pernas, caiu por cima de Fausto.
Fausto segurou o
pescoço do amigo e apertou, não iria soltar desta vez. Seus dentes encontraram
o nariz de Oscar.
O pedaço de carne se
soltou na boca. Oscar gritava sem o nariz.
O sangue banhou seu
rosto. Ele se virou e jogou Oscar no chão.
Estrangulando.
Matando o amigo que
gemia.
- Você adora isso, só
sabe fazer isso!
Oscar morreu.
Fausto levou um tempo
para perceber, a boca fazia um movimento automático. A fome comandava os
sentidos.
Sem perceber mastigou
e engoliu o nariz.
E quando voltou a si,
começou a gritar.
Assim que os gritos
pararam de brotar no peito, Fausto expeliu sua alma.
Com os olhos vazios,
a coisa no poço debruçou-se sobre o cadáver do amigo e comeu mais.
E depois esperou o
pior, como teria de ser.
Para sempre."
6 - Aracnídeos
- E depois... esperou
o pior, como teria de ser. Para sempre.
Marco Apostador se
levantou:
- Então quem ficou em
pé foi o Fausto?
Jefferson Relato
respondeu:
- Nada mais certo. Um
ladrão e um assassino, quem você acha que levou a melhor?
- Você sempre conta
muito bem.
- Só conto o que vi.
Eram os responsáveis
pela transição.
Aracnídeos que
sobrevivem entre o lixo.
O clube ficava na
pior parte da cidade. A única construção decente da rua.
Agressivos, com
instinto de sobrevivência nato.
Marco toca o ombro de
Jefferson:
- Acho que esta é a
pior entrevista de emprego do mundo.
Jefferson responde
sorrindo:
- Você sempre diz
isso. E eu sempre rio.
O Apostador olha
interrogando:
- Tá faltando algo.
Relato responde:
- Tá bom. Falarei o
que sempre digo.
E conta sobre a fundação
do clube. Sobre bases de medo e ideias.
Levando a estória a
ganhar ares de lenda urbana. Parte importante, ressalta Relato.
Apostador pergunta:
- Mas é preciso tudo
isso? Fazê-los penar, passar fome, sofrer?
Numa privação de
alimento recorrem ao canibalismo.
- Ao se falar por aí
que desejam trabalhar conosco, eles já pediram pela transição. Queremos os que
não tem mais nada e sobrevivem a tudo. Queremos os que farão o trabalho a
qualquer custo.
- Mas nem sempre dá
certo quando os tiramos de lá.
Relato mostra a arma.
- Quando não tem
jeito só temos esta solução. Nosso contrato é feito na carne com cicatrizes.
Nossa carteira de trabalho é nossa marca eterna. Aprendemos a não depender de
ninguém, aprendemos a acabar com nossas amarras inferiores. Eliminamos o amor e
a cumplicidade, ensinamos os que passam pela transição a trabalharem sozinhos e
se importarem somente com uma coisa...
Apostador responde:
- O clube.
Relato:
- Isso. O clube¹.
Marco e Jefferson,
nomes para lembrarem-se da raiz humanoide. Apostador e Relato, coisas que
gostavam de fazer na vida pregressa.
Os dois descem o
porão do clube. Abrem uma porta que escancara para um descampado particular.
A luz do entardecer
ilumina e revela o poço.
Jefferson Relato
prossegue:
- Nós não queremos
homens. Homens são fracos e sentem coisas idiotas. Queremos os que conseguem
sair dali. Como eu... Como você.
Marco foi jogado
sozinho no poço. Saiu dali com alguns dedos dos pés a menos.
Jefferson não teve a
mesma sorte, teve de devorar a carne de uma parceira da época. Caiu junto com
ela.
Tiraram as camisas
prontos para o esforço. Grafados nos corpos os "crachás" de trabalho.
A marca eterna do
clube de assassinos.
As tatuagens de belos
escorpiões.
Lá embaixo, o que era
Fausto vê a improvável corda descer.
Esperava o pior como
teria de ser.
Para sempre.
Extras e referências:
1 - Clube do escorpião: organização de assassinos de aluguel que possuem os mais variados métodos e um forte código de conduta, os piores dentre os piores. Aparecem em diversos contos do autor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário