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"Escabroso, delirante e assustador! Perfeito!" Por Drauzio Marqezini em 12/04/2012 no site Recanto das Letras.

domingo, 19 de novembro de 2017

O clube do escorpião





 1 - Longe da vista do mundo


 - Vou contar pra você o que aconteceu...


 "Aqueles dois só queriam um dia de descanso, uma visita ao bar parecia uma boa idéia.
 E ninguém no mundo "normal" espera por um sequestro.
 Na saída do bar foram dominados e encapuzados. Jogados em um porta-malas.
 Por quê um sequestro?
 Fausto e Oscar.
 Amigos inseparáveis até mesmo no sofrimento.
 Foram retirados do porta-malas num paradeiro desconhecido. Retiraram tudo o que lhes seria útil.
 Removeram os capuzes, Fausto e Oscar fitaram uma escuridão tão infindável quanto fria.
 - O que vocês querem? Dinheiro?
 Perguntou Oscar para a escuridão, um dos indivíduos ocultos respondeu:
 - Se tudo der certo tiramos vocês daí.
 Foram empurrados, a queda foi grande. Ao atingir o solo Fausto quebrou o tornozelo esquerdo.
 Oscar feriu a testa.
 Estavam abandonados em um buraco de paredes concretadas lisas. Lá embaixo não havia comida, água ou cobertores.
 Grandes amigos feridos.
 - Nós vamos sair dessa.


 As horas passam, a agonia traz companhia da fome e da sede. Especulam sobre o resgate que seria solicitado, para quem?


 Fausto lembra-se do pai inválido num colchão sujo do asilo. O mesmo inválido que em seus tempos áureos costumava usar o cinto para ensinar lições.
 A mãe era muda sem possuir deficiência alguma, distante e ausente. Morreu sem causar estardalhaço, dormindo.
 Fora daquele buraco não possuía ninguém.


 Oscar lembra-se da rua, fugiu de casa com doze anos e não voltou. Contrariou estatísticas e ainda estava vivo.
 Saiu do grande vazio do seio familiar e buscou o vazio eterno da rua. Seria melhor que rostos estranhos o pudessem fazer mal, não toleraria mais que pessoas de sua família o fizessem trabalhar. Ou as visitas noturnas do seu tio.
 Fora daquele buraco não possuía ninguém.


 Se corroíam com as lembranças e o silêncio. Os pulmões cansados de gritar.


 Cai a noite, a estação traz a chuva.
 Abençoada chuva.
 Fausto e Oscar bebem água da chuva das paredes lisas. Preciosa chuva, aguentariam a sede por hora.
 A temperatura cai rapidamente.
 Maldita chuva.
 Encharcados, morrendo congelados. Esfregam os corpos para diminuir a sensação.


 O cheiro, um odor forte que sentiram desde que aterrissaram ali os enchia de horror.
 Era um cheiro de morte.
 Alguém havia morrido naquele lugar.



 2 - Execução


 "Na manhã que se seguiu entraram em um consenso. Se tratava de uma execução.
 Com a pouca luz que entrava pela abertura viram seus rostos abatidos.
 Começaram a pensar.
 "Nós temos inimigos? Quem faria isso? Devemos dinheiro para alguém?"
 Não tinham nada que alguém pudesse querer, pelo menos no que se lembravam.
 Seria um modo horrível de morrer.
 Era necessário procurar uma causa para não enlouquecer. Afinal, sempre precisamos culpar alguém.
 O pé esquerdo de Fausto estava inchado, o menor movimento lhe causava dor intensa. Oscar pressionava os dedos na ferida em sua testa. Precisava de uns dez pontos no mínimo.
 - Nós vamos morrer aqui.
 Conclusivo.


 Relembram de sua amizade, suas histórias. Enquanto ainda tinham sanidade para isso.
 Se viraram nas ruas juntos, trabalharam em pequenos acertos.


 Tentaram escalar as paredes e era impossível.


 Fausto sobreviveu ao braço pesado do pai.
 Oscar manteve-se inteiro em meio ao vazio.
 Já ali, não havia esperança.


 O dia passa penoso, a noite é novamente gelada.

 "Nós temos inimigos?""


 3 - Razões para o logro


 "Procuram rostos, Oscar começa:
 - O velho turco sempre odiou a gente.
 Fausto afirma com a cabeça.
 - Pra ele não seria difícil arranjar isso, dinheiro compra tudo.
 Fausto discorda:
 - O velho turco sempre odiou a gente; mas ele não faria isto. Está inútil agora.
 Se calam.


 Fausto rompe o silêncio.
 - Agora o Lucão... aquele sujeito é casca. E você foi para os finalmentes com a prima dele.
 Oscar limpa o sangue da testa:
 - Só uma vez. Ele nem sabe de nada...
 - E como é que você vai saber?
 - Eu...
 - Você não sabe nada porra!


 E a estranheza da situação muda os espíritos. A fome violenta o corpo.
 Nas cabeças torturadas os culpados eram encontrados.
 Para Oscar, o culpado era Fausto.
 Para Fausto, o culpado era Oscar.
 E o olhar estava presente. Os deixe exauridos, com fome, desconfiados.
 E eles se olharão como inimigos."


 4 - Inimigos


 "Iriam morrer, disso tinham certeza. Então porque não elucidar o caso?
 Criar uma explicação.


 Fausto levantou-se com dificuldade, o tornozelo quebrado doía como o inferno. Olhou o outro apático e disse:
 - Acho que o Lucão fez isso. Você não devia ter feito aquela merda!
 Oscar escorou-se na parede e se levantou:
 - Então a culpa é do Oscar! Como sempre, não é Fausto? Esqueceu que você fez merda também? Três merdas pra falar a verdade.
 Fausto avançava cambaleando.
 - Eu não tive escolha.
 - Não? Você gostou.
 - Cala a boca!
 Oscar não se controlava:
 - Gostou sim, se não fosse eu você não parava.
 - Agora eu vou te arrebentar!
 - Então vem. Manco filho da puta!


 Fausto era maior, um tanque de raiva exausto indo pra cima de Oscar.
 Oscar, mais rápido, se esquivou e empurrou Fausto. Com o tornozelo ferido Fausto caiu pesadamente.
 Aproveitando-se da situação Oscar começa a chutá-lo.
 - Agora vamos saber quem é o fodão daqui!"


 5 - Vilões


 "Oscar não bateu por muito tempo. A fome o deixou fraco, teve de se sentar para não cair.
 Perderam a noção do tempo em que estavam confinados.
 - A gente é amigo...
 Fausto revirava-se no chão, deu o bote agarrando as pernas de Oscar.
 Conseguiu chegar ao pescoço. Com uma mão apertava, com a outra socava com a força que ainda tinha.
 Gritava:
 - Seu estuprador de merda! A menina gostava de você.
 Numa pausa da surra, Oscar soltou:
 - Unnhhh... ela não queria liberar... ela nem me viu, eu tava de máscara... o Lucão não sabe... Para!
 Fausto olhava o rosto destroçado no chão e ficou desatento. Oscar aproveitou que o agressor estava ajoelhado em cima de si e torceu o tornozelo quebrado.
 - Ahhhhhhhhhhhhhhhh!!!!
 Oscar zombou.
 - Seu doente. Eu tive de segurar você. Atirou na cabeça dos três moleques do turco.
 No chão Fausto gritava:
 - Eu não tive escolha, eles queriam me matar.
 - Sua cabecinha acha isso.
 Oscar se levantou e levou um chute nas pernas, caiu por cima de Fausto.
 Fausto segurou o pescoço do amigo e apertou, não iria soltar desta vez. Seus dentes encontraram o nariz de Oscar.
 O pedaço de carne se soltou na boca. Oscar gritava sem o nariz.
 O sangue banhou seu rosto. Ele se virou e jogou Oscar no chão.
 Estrangulando.
 Matando o amigo que gemia.
 - Você adora isso, só sabe fazer isso!
 Oscar morreu.


 Fausto levou um tempo para perceber, a boca fazia um movimento automático. A fome comandava os sentidos.
 Sem perceber mastigou e engoliu o nariz.
 E quando voltou a si, começou a gritar.
 Assim que os gritos pararam de brotar no peito, Fausto expeliu sua alma.
 Com os olhos vazios, a coisa no poço debruçou-se sobre o cadáver do amigo e comeu mais.


 E depois esperou o pior, como teria de ser.
 Para sempre."


 6 - Aracnídeos


 - E depois... esperou o pior, como teria de ser. Para sempre.
 Marco Apostador se levantou:
 - Então quem ficou em pé foi o Fausto?
 Jefferson Relato respondeu:
 - Nada mais certo. Um ladrão e um assassino, quem você acha que levou a melhor?
 - Você sempre conta muito bem.
 - Só conto o que vi.
 Eram os responsáveis pela transição.


 Aracnídeos que sobrevivem entre o lixo.


 O clube ficava na pior parte da cidade. A única construção decente da rua.


 Agressivos, com instinto de sobrevivência nato.


 Marco toca o ombro de Jefferson:
 - Acho que esta é a pior entrevista de emprego do mundo.
 Jefferson responde sorrindo:
 - Você sempre diz isso. E eu sempre rio.
 O Apostador olha interrogando:
 - Tá faltando algo.
 Relato responde:
 - Tá bom. Falarei o que sempre digo.


 E conta sobre a fundação do clube. Sobre bases de medo e ideias.
 Levando a estória a ganhar ares de lenda urbana. Parte importante, ressalta Relato.
 Apostador pergunta:
 - Mas é preciso tudo isso? Fazê-los penar, passar fome, sofrer?


 Numa privação de alimento recorrem ao canibalismo.


 - Ao se falar por aí que desejam trabalhar conosco, eles já pediram pela transição. Queremos os que não tem mais nada e sobrevivem a tudo. Queremos os que farão o trabalho a qualquer custo.
 - Mas nem sempre dá certo quando os tiramos de lá.
 Relato mostra a arma.
 - Quando não tem jeito só temos esta solução. Nosso contrato é feito na carne com cicatrizes. Nossa carteira de trabalho é nossa marca eterna. Aprendemos a não depender de ninguém, aprendemos a acabar com nossas amarras inferiores. Eliminamos o amor e a cumplicidade, ensinamos os que passam pela transição a trabalharem sozinhos e se importarem somente com uma coisa...
 Apostador responde:
 - O clube.
 Relato:
 - Isso. O clube¹.


 Marco e Jefferson, nomes para lembrarem-se da raiz humanoide. Apostador e Relato, coisas que gostavam de fazer na vida pregressa.
 Os dois descem o porão do clube. Abrem uma porta que escancara para um descampado particular.
 A luz do entardecer ilumina e revela o poço.
 Jefferson Relato prossegue:
 - Nós não queremos homens. Homens são fracos e sentem coisas idiotas. Queremos os que conseguem sair dali. Como eu... Como você.


 Marco foi jogado sozinho no poço. Saiu dali com alguns dedos dos pés a menos.
 Jefferson não teve a mesma sorte, teve de devorar a carne de uma parceira da época. Caiu junto com ela.


 Tiraram as camisas prontos para o esforço. Grafados nos corpos os "crachás" de trabalho.
 A marca eterna do clube de assassinos.
 As tatuagens de belos escorpiões.


 Lá embaixo, o que era Fausto vê a improvável corda descer.
 Esperava o pior como teria de ser.

 Para sempre.





Extras e referências:

1 - Clube do escorpião: organização de assassinos de aluguel que possuem os mais variados métodos e um forte código de conduta, os piores dentre os piores. Aparecem em diversos contos do autor.


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