Ela precisava socializar, é o que todos diziam.
“Flávia, você fica no seu mundo e conversa com os outros
apenas pela internet, precisa sair mais”
Sair mais, não ficar sozinha mais uma noite. O mundo é
fugaz, não basta nossa própria companhia para todos.
“Você é tão bonita, devia aproveitar a vida”
E era bonita mesmo, não achava que desperdiçava a vida. Não
gostava que os outros sequer pensassem nela.
O fato é que de tanto martelarem, de tanto falarem, de tanto
encherem o saco e somando as malditas festas de fim de ano, conseguiram
deixá-la deprimida.
Ajeitou seu cabelo curto e preto, botou o batom vermelho e
saiu sem rumo.
Acabou parando no bar de um amigo de faculdade. O ambiente
era patético, poucos solitários iam para a rua nas vésperas de festas.
- Todos com a família e os amigos.
Lhe respondeu o dono.
Foi aí que viu ele.
Ele parecia grande mesmo sentado no balcão, tinha um rosto
mediano e uma bela barba. Os olhos eram a cereja do bolo, pousaram fixos nela.
“Eu espero que ele venha até aqui, nem a pau que vou lá”
Estava decidida, tomaria mais uma dose e se ele não fosse
falar com ela iria embora.
Então ele sorriu pra ela, o choque foi tão grande que ela
retribuiu com um “uh”!
“Espero que ele não tenha ouvido isso”
Já vinha em sua direção, ele cheirava bem.
- Está criando coragem para aparecer na festa?
A investida boba a fez corar.
- Não tenho festa pra ir.
Ele continuou com as frases tolas:
- Bonita assim e toda arrumada sem lugar pra ir? Qual é seu
nome?
Não sabia se era o jeito ingênuo da chegada dele, ou o modo
que olhava, daria uma chance:
- Flávia.
Ele passou a mão pela barba.
- Flávia, eu sou Ivan. Tenho um lugar para ir mas me falta
companhia.
E estendeu a mão.
- Quer ir comigo? Não se preocupe, é aqui perto.
Ela fez uma cara de relutante.
- Lembrando que toda a rua é iluminada e tem várias pessoas
perambulando indo para suas casas.
Ela riu.
Saíram juntos do bar.
A casa estava iluminada, havia pouco mais de uma dezena de
pessoas ali. Flávia cruzou a porta e alguns conversaram entre si. Ninguém
prestou a atenção nela e Ivan não a apresentou. O lugar fedia, justificado
cheiro de festa.
De mãos dadas com Ivan não ligou. Tentaria socializar,
haveria tempo para isso.
- Me diga o que você quer ouvir Flávia.
Ela pensou: Mas eu não conheço ninguém, e se não gostarem?
Ivan sorriu:
- Está na minha casa e vamos ouvir o que você quiser!
“Qualquer coisa que não seja pra baixo, afinal não estou
sozinha, diga qualquer coisa menos Joy Division¹”
E sua boca a traiu com o que queria de verdade:
- Joy Division.
O barbudo arregalou os olhos.
- Putz coloco com prazer, é uma das minhas bandas
preferidas. Que coincidência.
E atravessou o grupo de pessoas para alcançar o som.
Enquanto She's lost control invadia a sala ela permitiu balançar a cabeça e
curtir de leve com as mãos.
Parecia que estava conseguindo.
O povo parecia não dar a mínima pra música. Para Ivan o que
importava era Flávia, lhe trouxe uma taça de espumante devidamente gelado.
Então ele sentou ao seu lado, os outros convidados ficaram
encarando, aquilo atraiu a atenção de todos.
- Você é um achado, sem sombra de dúvida.
Flávia pôde ouvir o cochicho do rapaz de camisa vermelha que
estava próximo do sofá.
- Ele sempre diz isso...
Ivan chegava mais perto e já encostava a mão em sua perna.
- Flávia, Flávia. Parece que você é meu número, meu número
da sorte.
E aí a magia se perdeu, ele veio como um carro desgovernado
para cima dela. Avançando o sinal e adentrando sua boca.
Todos olhavam enquanto ela colocou as mãos no peito dele,
tentando afastar o grandalhão.
“Ninguém vai me ajudar?”
De repente ele pareceu sentir as pequenas mãos e se afastou
com o rosto perturbado.
- Desculpe, é que passo muito tempo sozinho e não sei como
agir.
O rapaz de vermelho olhou para Flávia:
- Sempre a mesma desculpa, aff!
Ivan se levanta.
- Vou pegar mais alguma coisa pra bebermos.
E foi na cozinha, Flávia disse ao cara de vermelho:
- Depois desse atropelamento eu vou embora!
Atônito ele chegou mais perto dela:
- Você estava ouvindo o que eu disse!? Querida vai embora
logo! Lucile!
Ele chamava uma negra muito bonita do outro lado da sala.
Lucile foi até o som, parecia concentrada, após um toque a música parou.
Ivan gritou da cozinha:
- Desculpe, parece que a energia desta casa é uma bosta.
Quando o som voltou começou a tocar She's lost control
novamente. E Ivan grita:
- Porra!
Flávia se sentia tonta, o homem de vermelho fala
rapidamente:
- Ele vai mexer no rádio primeiro quando voltar, se você for
embora logo, talvez não a alcance.
Apavorada pela urgência das palavras, Flávia tentou levantar
mas suas pernas não responderam.
- Me ajudem!
Ela disse para todos na sala, os rostos consternados só observavam.
- Pobre coitada! Acho
que você não entendeu querida, estamos tentando ajudar como podemos.
E um momento depois Ivan já estava sobre ela, as mãos em seu
pescoço invencíveis. Tudo se fechava naqueles segundos finais durante a
violação e o estrangulamento. Flávia soltou um baixo pedido de socorro.
Em resposta, o rosto suado de Ivan:
- Estamos sós aqui, doze! Só nós!
Perdendo a vida, Flávia vê as pessoas da sala perdendo as
formas.
Foi depositada embaixo do assoalho ao lado de um esqueleto
com camisa vermelha.
Era o número onze.
Extras e referências:
1 - Joy Division, banda liderada por Ian Curtis, expoente do pós-punk com flertes ao gótico. She's lost control representa a cama de gato com a protagonista.