Citações

"Escabroso, delirante e assustador! Perfeito!" Por Drauzio Marqezini em 12/04/2012 no site Recanto das Letras.

domingo, 23 de abril de 2017

Devolva




"Emprestar é um prazer, devolver é um dever."


 1 - O amanhecer doentio


 Acordou de manhã e tomou seu café magro: pão com manteiga e chá. Foi até o quarto e apanhou o que procurava.
 Não era a primeira vez que faria isso. Deu uma olhada em seu caderno de anotações e limpou suas armas.
 A viagem seria longa e só poderia ser feita após seu trabalho.
 Saiu então para trabalhar, era funcionário dos correios.
 O dia passou em meio ao turbilhão de pessoas que lotava os guichês. Saiu do trabalho aliviado pois agora iria atrás de sua vingança.
 Assoviava um hino de sua nova igreja.


 Rubens estava sem um puto no bolso, quem diria.
 Após uma vida cheia de mimos se tornou um garoto de programa.
 O pior era encarar aquelas velhas carcomidas e aqueles homens nojentos. Vivia então neste ritmo monótono de luxúria.
 Mas esta noite era diferente.
 Rubens estava parado em seu ponto quando viu aquele homem estranho se aproximar de uma casa. O homem carregava uma mala.
 "Deve ser turista, só pode."
 Aquele homem foi se aproximando e lhe perguntou:
 - Você conhece o Renê? Fiquei sabendo que ele morava por aqui.
 O garoto de programa conhecia o Renê, afinal era o maior viciado daquelas bandas. Diziam que o Renê devia até a alma aos traficantes.
 - Conheço sim. Ele mora ali ó!
 E apontou para mostrar a casa. O homem olhou Rubens e disse:
 - Renê tem algo que é meu. Você sabe se ele está em casa?
 Rubens respondeu:
 - Não sei não, ele vive por aí procurando droga...
 O homem começou a andar em direção da casa de Renê, no meio do caminho se virou e disse ao Rubens:
 - Sai dessa vida garoto.
 E lhe deu as costas, Rubens lhe mostrou o dedo médio.
 "Que otário!"
 Viu então o homem bater palmas em frente da casa. Era em torno de onze e quinze.
 Rubens deixou o cigarro nas mãos interessado na cena.
 Renê saiu chapado para atender.
 - Quem é?
 O homem disse:
 - Não lembra de mim Renê?
 Renê coçou os olhos:
 - Não lembro não. Se não te devo... cai fora!
 Ia fechar a porta mas o homem falou gravemente:
 - Me deve sim, vim buscar minha Laura!
 Renê ouviu aquilo espantado:
 - Cara, é você mesmo? Quantos anos que não te vejo, quer entrar?
 O homem respondeu:
 - Só quero a Laura. E uma reparação.
 O chapado lhe disse:
 - Tu vem até minha casa a esta hora procurando isso? Você tá me zoando meu?
 O homem riu:
 - Sabia que não seria fácil. Eu sabia e esperava que não fosse pois isso torna o que vou fazer certo.
 Rubens viu então o brilho da doze, cano cerrado. O homem apontou para Renê e atirou.
 O primeiro tiro destruiu os genitais e parte das coxas.
 - Ahhhhhhhhhrrrrgggghhh!!!
 Os gritos invadiram a rua. O homem levou o indicador à boca e disse a Rubens:
 - Shhhhhh!
 Disse calmamente.
 - Onde está Laura?
 Chorando e sangrando muito Renê apontou o interior da casa. O homem pulou Renê no chão e entrou.
 Gritou dentro da casa:
 - Onde?
 Renê gritou a resposta:
 - Na estante porra! Tu me matou. Tu arregaçou meu pau por causa de uma merda dessa...
 O homem saiu da casa com uma caixa pequena nas mãos.
 - É minha reparação Renê. Meu Senhor, a vingança é minha!
 E atirou na cabeça do drogado. A massa cerebral fez parte do quintal. O homem foi embora calmamente assoviando.
 Rubens estava chocado.
 Só depois percebeu que o cigarro queimava seus dedos.
 A polícia não deu muita atenção ao caso pois Renê era um viciadinho.
 De manhã Rubens saiu de casa para procurar um emprego... num amanhecer doentio.

sábado, 22 de abril de 2017

O único




“A sociedade e a ignorância caminham juntas”


 Estava na reunião não se sabia o porquê, era o típico reacionário. Detestava mudanças.
 Acompanhava-lhe a mulher grávida, a triste Joice, com seu barrigão bonito. Linda como era destoava do chato Veiga.
 A reunião foi organizada pelos “amigos do bairro”.
 Era capitaneada pelo Queiroz, um gordão simpático, que começou a falar:
 - A empresa química-farmacêutica Xemox¹ tem agido em nossa cidade a anos. Recentemente houve um incidente envolvendo o nome da empresa na cidade vizinha. Vazamento químico é coisa séria gente.
 O Veiga lhe interrompeu:
 - E o que isso tem a ver conosco?
 O Queiroz bateu levemente no barrigão e disse:
 - Tudo Veiga! Proponho realizar uma investigação por nós mesmos. A polícia pouco ajudaria ou qualquer orgão. Tenho a suspeita que a empresa despeja lixo em nosso principal rio.
 O mala do Veiga:
 - E..?
 Irritado o Queiroz revela:
 - Pode haver contaminação de solo, da água e dos animais, até nós podemos estar contaminados.
 Houve então a votação pela investigação, somente o Veiga recusou.
 Pensava em outras coisas e recusou.
 E foi o único.

A maquete



 "No tédio criamos, ou destruímos."



 Ele estava com um problema. Sua vida se tornara monocromática, cinza.
 Sua mulher não entendia seu dilema:
 - Deve ser coisa da idade.
 Mas ela raramente pensava sobre isso, afinal, tinha que cuidar de sua vida, também cinza.
 Infeliz, ele continuava suas rotinas.
 Beijava a mesma boca... recebia o mesmo beijo. Trabalhava num trabalho chato, porém útil. Fazia "amor" com a esposa a cada quinta feira...
 Certa vez pensou em ter filhos, mas ele rechaçou a ideia. Sua mulher estava bem em ser cinza.
 Tinha sonhos e fantasias em que chutava o pau da barraca. Sonhos em que ia morar afastado de tudo.
 Já lhe doía encarar aquela selva de pessoas, aquela que gritava o dia inteiro. E era cinza.
 - Onde foram parar as cores?
 Questionava-se sem achar resposta, em sua cabeça, as cores da selva de pessoas não viviam por si só. Somente alimentavam o maldito cinza.
 Tudo começou a mudar quando seu irmão lhe pediu:
 - Eu e minha mulher vamos viajar, cuida da Soninha pra nós?
 Desesperado para sair do tédio aceitou cuidar da sobrinha.
 - Lógico!
 E viu o irmão trazer aquela belezinha de olhos azuis.
 - Oi tio Júlio.
 Ele soltou algo como:
 - Oi Soninha. A gente vai se divertir, não vai?

domingo, 9 de abril de 2017

O que eu vejo





Eu vejo um estranho,
Alguém errático pela casa,
Um pássaro sem uma asa,
Fico arrepiada com seu jeito medonho.

Acomodado com a vida que tem,
Estático com seu dia monótono, calmo,
Uma irreal criatura de um salmo,
Com uma tola máscara¹ que se mantêm.

Desinteressado nos meus dilemas,
Desinteressante, parte da massa uniformizada,
Decepção; nunca quis a parte pesada,
Decepcionante na resolução dos problemas.

A carapuça serviu a anos,
Acabou com MEUS planos,
Vivendo no automático, com script,
Mas meu caro: tempus fugit, tempus fugit.

Permitir meu jardim²,
Pra você foi um favor,
Um propósito pra mim,
Para acabar com a dor.

Que pagamento para suportar,
Seu mal humor, sua mudança,
Para conduzir este contrato, esta dança,
Cedeu um canto para não se importar.

Separar não era uma opção,
Continuaria com meu tormento,
Me torturar, seria sua ação,
Eu decidi e NÃO lamento.

Me arrependeria se fosse bom,
Se deixasse um legado,
Não fosse integrante do gado,
Aceitando; sem emitir som.

E nesses dias te fodi com gentileza,
Foram almoços e jantares excelentes,
Via o maxilar dançando, mostrando dentes,
Um bicho, uma besta, com clareza.

Quantidades cavalares de veneno, de mágoa,
Seu sangue tóxico e não sabia,
Se doasse para alguém, mataria,
Mais, ainda mais denso que a água.

Agora tomba a cabeça na mesa,
Continuo comendo outra comida,
Perecendo me deixou saída,
Apodrecendo, para que eu lhe esqueça.

Macarrão com almôndegas, o melhor,
Delicioso, enquanto controlo o pior.

Dependendo da visão qualquer coisa é monstruosa,

Até o rosto de quem mais gosta.






Extras e referências:


1 - Para o autor a vida é uma constante troca de máscaras. Conceito explorado em outros contos, exemplos: Como um leproso, O bloqueio do traça, Pior do que eu.

2 - Vemos outro ângulo do crime do conto O que eu quero.





sábado, 8 de abril de 2017

O que uso pra sair


      
      “Você precisa conhecer o inferno, não é preciso ficar lá!”



Vocês são engraçados.
Em dias frios se enchem com indumentárias pesadas. Cobrem o corpo com brilhos, com tecidos.
Não gostam muito da casca? Estou certo?
Nos dias chuvosos protegem os pés com botas, galochas, nas mãos levam um grande guarda-chuva, colocam uma capa sobre os ombros. Para alguns bichos a mudança é biológica, para esconder dos predadores mudam as cores, mesclam-se ao ambiente, modificam odores, deixam apêndices, soltam tinta.
O predador do homem, o maior, é a sua importância com a opinião dos seus. Então enchem agendas médicas para retirar banhas laterais, diminuir bochechas, afinar o nariz para que os outros gostem de sua imagem.
Para que tudo dê certo na vida.
Para que tudo fique bem no sábado à noite, por alguns momentos frente ao espelho.
Nascer com um rosto que cresce, murcha e morre é um pesadelo para todos vocês. Aturar a mesma cara enquanto ela se degrada lentamente achando que todos dão esse mesmo significado.
Masturbando-se mesmo cercado de parceiros, masturbando-se em namoros perfeitos, em casamentos perfeitos.
Uma perfeita merda.