Citações

"Escabroso, delirante e assustador! Perfeito!" Por Drauzio Marqezini em 12/04/2012 no site Recanto das Letras.

sábado, 22 de abril de 2017

A maquete



 "No tédio criamos, ou destruímos."



 Ele estava com um problema. Sua vida se tornara monocromática, cinza.
 Sua mulher não entendia seu dilema:
 - Deve ser coisa da idade.
 Mas ela raramente pensava sobre isso, afinal, tinha que cuidar de sua vida, também cinza.
 Infeliz, ele continuava suas rotinas.
 Beijava a mesma boca... recebia o mesmo beijo. Trabalhava num trabalho chato, porém útil. Fazia "amor" com a esposa a cada quinta feira...
 Certa vez pensou em ter filhos, mas ele rechaçou a ideia. Sua mulher estava bem em ser cinza.
 Tinha sonhos e fantasias em que chutava o pau da barraca. Sonhos em que ia morar afastado de tudo.
 Já lhe doía encarar aquela selva de pessoas, aquela que gritava o dia inteiro. E era cinza.
 - Onde foram parar as cores?
 Questionava-se sem achar resposta, em sua cabeça, as cores da selva de pessoas não viviam por si só. Somente alimentavam o maldito cinza.
 Tudo começou a mudar quando seu irmão lhe pediu:
 - Eu e minha mulher vamos viajar, cuida da Soninha pra nós?
 Desesperado para sair do tédio aceitou cuidar da sobrinha.
 - Lógico!
 E viu o irmão trazer aquela belezinha de olhos azuis.
 - Oi tio Júlio.
 Ele soltou algo como:
 - Oi Soninha. A gente vai se divertir, não vai?



 No primeiro dia, ele levou Soninha à escola, depois brincou muito com ela. Aproveitava os minutos pois estava de férias.
 A noite caiu e sua mulher chegou. Eufórico e feliz (quanto tempo não era) ele pôs a contar o dia com Soninha.
 - Ah meu bem... deixa eu dormir, amanhã conversamos. Meu trabalho me mata.
 O rosto dele, talvez, o mais triste do mundo na hora que a mulher lhe deu as costas. Soltou baixinho entre os lábios:
 - Tenho saudade disso que não vivemos. Tenho saudade dos carinhos e palavras amenas.
 O restante da música¹ corria livre na cabeça.


 Soninha chegou da escola dizendo:
 - A fêssora pediu pra gente fazer uma aquete do lugar que a gente gosta.
 Júlio respondeu sorrindo:
 - É maquete. E eu te ajudo linda.
 Soninha queria fazer uma fazenda porque adorava passar o fim de ano no da família.
 Ouvindo isso Júlio teve vontade de chorar, fazia muito tempo que não ia a fazenda.
 Ficava lá entre o cinza e deixava os verdes, os brancos, os azuis daquele campo. Soninha olhou a cara do tio e com uma perspicácia infantil disse:
 - Também sinto falta tio.
 Júlio disse um conselho para a pequena:
 - Então lindinha, lembre de tudo e sinta, sinta a cor do campo, veja o vô Geraldo, sinta até o cheiro do cocô das vacas...
 Ouvindo isso Soninha começou a rir.
 - E tudo ficará bem.
 O problema é que Júlio seguiu seu próprio conselho.


 A maquete ficou bonita, um primor. Era realmente uma fazenda quase real.
 Na manhã seguinte a mulher saía de casa e lhe deu um beijo, como sempre, o burocrático beijo.
 Comeu uma torrada e se pegou olhando aquela maquete, quase podia ouvir seu pai Geraldo, estava para provar o gosto do leite de vacas quando:
 - Tio que tá fazendo? Tio Jú, cê tá lembrando?
 Na volta ao fatídico e decepcionante cinza ele respondeu:
 - Tava sim lindinha, tava sim...
 Depois de levar Soninha para a escola tinha a tarde livre, decidiu ir ao museu.
 Olhou uma obra linda e trágica de Picasso e começou a matutar.
 Fechou os olhos. E estava lá na obra, sentiu o cheiro de pólvora e viu a destruição de Guernica².
 Sentiu-se mal e voltou ao cinza.
 Então correu até sua casa, se funcionava com o quadro então... Então...


 Abriu a porta de sopetão e lançou o corpo até a maquete. Olhou fixamente e fechou os olhos..
 Começou a sentir.
 Sentia o cheiro do estrume. Podia sentir o cheiro do estrume!
 E podia ver o céu lindo e azul, o lago limpinho, a grama vivaz.
 Faltava só uma coisa, faltava seu pai.
 - Júlio! É você Júlio?
 Olhou o pai. Estava do jeito que se lembrava, cada fio branco da cabeça estava no lugar. Correu até o pai e o abraçou, beijou sua testa.
 Agora trabalhavam juntos.
 Estava tão feliz que nem lembrou que viu o mesmo pai um ano atrás. Diminuído em um caixão.


 Patricia teve que buscar a Soninha na escola. Júlio não apareceu.
 Ligou aos amigos e nada. Pediu então, por precaução, ao chefe no telefone alguns dias de folga.
 Sentia algo estranho... finalmente sentia algo.
 Começou como uma pontada de agulha.
 Era o desespero chegando.
 Ligou para a polícia, foi a delegacia, ao I.M.L. e a diversos hospitais.
 Não queria dizer que gostava dele mas faltava ele em seu mundo cinza e irretocável.
 No terceiro dia de desaparecimento Soninha a deixou encucada.
 - Tio Jú tá trabalhando com o vô Geraldo.


 O irmão de Júlio veio buscar a Soninha e encontrou Patricia em pedaços.
 - Calma mulher, ele vai aparecer!
 Ela mal o ouvia. Despediu-se dos dois e foi tomar um banho. Patricia costumava tomar banhos de várias horas quando estava nervosa.
 Depois ficou olhando no espelho.
 Não; não estava um bucho, era linda. Por que ele a deixara?
 Foi quando notou a maquete.
 Aquela bendita maquete estava ali fazia uma semana. E só agora ela a notara.
 Um pensamento de recordação a assaltou:
 - Calma mulher, ele vai aparecer!
 Estava olhando para a maquete para distrair a mente e levou um susto enorme...
 Um extraordinário ser minúsculo lhe acenava. Era ele!


 Primeiro empalideceu, depois sentiu que havia enlouquecido e finalmente sentiu ódio. Saiu de casa tão rápido que percorreu as ruas descalça.
 Então batia à porta do irmão de Júlio.
 - Quero falar com Soninha!
 O irmão assustou-se, achava que ela havia pirado, "louco é melhor não contrariar" lhe disseram um dia.
 Trouxe então o anjinho de olhos belos.
 Mordendo os lábios ela interroga.
 - Soninha, você tinha falado que o tio Jú estava com o vô.
 A menininha:
 - Hu-rum.
 Neurótica, grita para a pequena:
 - E como ele fez isso!?
 E foi interrompida pelo pai da criança pois este via que a filha já marejava os olhos.
 - Vai pra casa Patricia! Toma um calmante.
 Não se sabe como ela chegou em casa.
 Pensava em Júlio... tinha ódio de Júlio.
 Ele que fugira e que acenava de uma maldita maquete. E como fizera?
 Imaginou então para onde ela mesma poderia ir...


 Enquanto isso, na casa do irmão de Júlio a preocupação era geral.
 Antônio, irmão de Júlio se precipitou:
 - Ela pirou. Eu vou até lá.
 E correu pela rua.


 Patricia tocou primeiro um quadro de uma cachoeira e nada aconteceu...
 - Como ele fez?
 Se perguntava e pôs a testa no quadro. Nada aconteceu.
 - Acho que só funciona se você quiser ir de verdade pro lugar...
 Lembrou-se então dos livros do bardo imortal³, livros de romances lindos, de belas tragédias, de poesias maravilhosas.
 Um lugar em que queria estar...
 Derrubou os livros no chão.


 Antônio chega na casa e fica chocado.

 Ela ainda devorava Shakespeare na hora em que foi colocada a camisa de força.







"Uma fantasia de horror repleta de suspense, com um final que desmonta o leitor!"
Eduardo Cocci, cronista e leitor do autor desde 2009.




Extras e referências:

1 - Fuga do cinza, Música presente no último álbum da banda Ruptura, banda do universo do autor que foi influente dentro do punk rock e no disco de despedida flertou com o pop sombrio.

2 - 
 Guernica


3 - 
 William Shakespeare

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