Citações

"Escabroso, delirante e assustador! Perfeito!" Por Drauzio Marqezini em 12/04/2012 no site Recanto das Letras.

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Só por hoje







 Ele¹ acordou nove horas.
 Apesar de estar de férias.
 Sentiu que não estava aproveitando. Era para estar descansando, gostaria de acordar ao meio-dia.
 As pessoas o impulsionavam a fazer coisas e ele não gostava disso. A situação se agravou pois voltou a morar com a mãe. Ele se perguntava o porquê dos relacionamentos terminarem.
  Parecia que o destino cravava as garras em seu desapego familiar. Quando pensou que ficaria longe da mãe para sempre tudo deu errado.
 Morar com a namorada foi complicado.
 E após um tempo, insustentável.
 Residir com a namorada foi comparado com dividir o teto com qualquer parente no quesito chatice.
 Todos que se relacionavam com ele chegavam as mesmas atitudes. Dedos na cara e milhares de perguntas.
 "O que você faz com seu dinheiro?"
 "Você deveria fazer algo da tua vida!"
 "Você não pensa em crescer?"
 "Porquê não faz um curso ou volta pra faculdade?"
 Todos opinavam, todos questionavam. Ele queria morrer sempre que tinha de responder.
 "Paguei as contas e comprei..."
 Geralmente o rosto do opinador-questionador(chato entre outras conotações) se alterava diante dessa resposta. E soltava os cachorros.
 "Comprou o quê? Um livro? Um gibi estúpido? É por isso que você não consegue nada..."
 E blá, blá, blá.
 Ou quando respondia:
 "Eu não sei o que fazer."
 O opinador-questionador-chato ficava incrédulo.
 "Não acredito. Com essa idade ainda não sabe o que fazer?"
 Falavam como se ele fosse falecer em dois minutos. E toda vez que ele achava uma forma de prazer: escrever, teatro, cinema, quadrinhos etc. Tinha de escutar:
 "Vai fazer teatro com seus amigos? Mas eles são um fracasso! Um bando de gente que não tem onde cair morta."
 Ou:
 "Gastou quanto nisso!?"
 Um verbo que os opinadores-questionadores-chatos conheciam bem: gastar.
 Parecia que ninguém lembrava do verbo viver.
 Parou de matutar, correu para o banho. Estava atrasado.


 Saindo de casa a voz da mãe grita no seu cérebro.
 "Não esquece de dar comida para os cachorros."
 Estava de férias.
 Isso potencializava seu egoísmo frustrado. Queria somente se alimentar. Seria mais conveniente envenenar os caninos.
 A matriarca grita novamente e ele volta para dar comida aos animais.


 Ao entrar no transporte público lhe saltou da carteira a fácil nota de vinte. Tentou pagar o cobrador, este se recusou a aceitar o dinheiro. Apontou para um adesivo imbecil no vidro.
 "Troco máximo permitido R$ 10,00."
 Então era isso?
 Se por acaso lhe faltasse outras notas teria de descer. Ele pensa e olha para o cobrador.
 "O que eu faço com você?"
 Age rápido. Puxa a mão direita do cobrador de encontro a roleta, com o joelho prende a mão esmagando. O cobrador grita, ele puxa seus cabelos e começa a bater a cabeça contra o caixa.
 Os dentes quebrados caem no caixa aberto, manchando as notas de sangue.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Como um Leproso






Não me convidaram, por consequência minha família não foi convidada.
E isso me faz pensar.
Não é de hoje que me distancio, que pouco me afeto, que tão pouco me importo.
Me sinto como um leproso, preso numa bolha imposta por meu espírito, encarcerado pela minha vontade, cárcere este, auto imposto.
E como a lepra o processo foi progressivo, sou mais pária hoje do que era ontem. Já caminhava na estrada sem destino desde meus primeiros relacionamentos.
Um exemplo simples dos sintomas foi minha carreira profissional. Era incapaz de manter máscaras nos primeiros empregos portanto incapaz de manter. Duravam em média um ano se tanto.
Bastava um dia ruim para que eu pedisse a conta, bastava meu comportamento bizarro para que fosse mandado embora.
E nunca lamentei nenhum deles.
Conheci muitas mulheres e poucas me afetaram.
Pensava que não sabia amar, pobre tolo imaturo, até os que padecem como eu são capazes de amar.
Reflito aqui esperando o coletivo nesse sábado tétrico dando respostas do porquê não ter sido convidado.
Tenho receio de ter um rompante de meu fantasma passado e chutar a mesa com as cartas que tenho hoje.
Desenvolvi máscaras, quando percebi com a maturidade que meu modo de viver não era aceitável pela sociedade.
Afinal, tenho mais prazer lendo do que falando com pessoas que não me interessam, prefiro ouvir boa música do que ir a festivais onde me tocam involuntariamente, escrever meus textos de autor frustrado do que socializar.
Socializar, palavra difícil de falar e pior, difícil de praticar. Para mim, sem máscara, quase impossível. Minha “doença” não tem cura e aumenta com a idade, diferente da lepra que pode ser tratada mesmo que já tenha mutilado bastante seu portador.
Com a necessidade de expor detalhes das vidas nas redes sociais com fotos, áudios e posts ruins me torno um leproso dos tempos modernos.
Visto como o frio doente(cadáver) que não deseja sair com os “amigos” do trabalho.
Amigos do trabalho.
Outra mentira corporativa, posso dizer que tive poucos amigos reais na vida e destes pouquíssimos vieram dos trabalhos.
Uma forma amarga de ver a vida?
Nunca pensei assim, saboreio um livro bom como um macarrão bem feito, escuto músicas boas como se saboreasse um bolo de chocolate. Mas dá pra contar nos dedos as pessoas que me causaram isso com conversa, com brincadeiras ou com sexo.
Tentei ser o melhor possível com minhas namoradas. Algumas compreenderam minha patologia de maneira mais fácil, algumas partilhavam de outras doenças, algumas não me entendem até hoje.
Parei de me culpar (ou tentar) pelas traições muito cedo, parei de me culpar (ou tentar) por dizer as verdades nos relacionamentos mais tarde.
As traições, verdades utilizadas para destruir ou mudar na marra a dinâmica dos relacionamentos amorosos.
Traí e fui traído, dou risada quando escuto pessoas que dizem não trair.
Já nos traímos ao acordar e seguir uma rotina torturante para sobreviver com um sorriso no rosto. Nos traímos em relações de merda com folgados e folgadas.
Trair a si mesmo é uma característica do sapiens.
Se eu fosse uma carta de tarô seria o eremita. Viveria bem sozinho, com bons livros e boa música.
Eu odeio o mundo?
Eu não odeio ninguém, eu odeio ter de ir a encontros idiotas, conversar com gente vazia, sorrir em comemorações que não me apetecem, falar que amo só para tornar vidas suportáveis, odeio amar e não ter, odeio visitar pessoas quando poderia escrever ou ler, eu odeio conviver.
E isso é e sempre será perigoso pra todo o resto.
Eu posso fingir empatia e chorar em uma cena tocante para a maioria.
Mas eu não sinto nada por quase ninguém.
Eu sou aquele que na situação extrema causará o maior dano e tentará sair impune.
Aquele que envenenaria o café que todos tomam para atingir um único e igualmente insignificante ser.
E vou sobreviver a todos vocês.
Mesmo que me conheça a mais de dez anos e viva a três casas da minha. Mesmo que eu não te visite pois não gosto disso e não por que não gosto de você, mesmo que tenha chorado a morte do seu pai verdadeiramente e não espere nada disso.
Mesmo que não tenha me convidado ao seu casamento.
Hoje dizem que correspondemos de um a três por cento da população mundial.
O coletivo chegou.
Olho da janela uma menina contida em seus movimentos, sentada no banco procurando não encostar em ninguém. Tem um livro nas mãos e não quer fazer contato visual, não quer ser reconhecida.
A porcentagem aumenta a cada dia.
Que máscara vou vestir?
Só por hoje¹.


Publicado no site Recanto das Letras em 15/11/2016.



1 - Referência ao espírito do cidadão comum revoltado, presente no conto homônimo.


domingo, 21 de outubro de 2018

Turismo Penal






O rapaz bronzeado caminha pela praia em direção a câmera.
“- Olá, sou Gabriel Sovina, tri campeão mundial de surfe. Hoje não estou aqui para indicar materiais esportivos.
Todos sabem que já viajei o planeta com o esporte, estou aqui para falar de suas férias e da terra que adotei.
Isso mesmo.
Está cansado dos mesmos lugares, as mesmas praias e emoções? Que tal testar seu psicológico em um dos destinos mais assustadores do mundo?
Não falo de praticar esportes radicais, ou visitar parques de diversão com brinquedos imensos.
Falo de um local real que abriga criaturas saidas dos piores pesadelos dos escritores de terror.
Uma terra cujos nativos são considerados mestres da sobrevivência, lugar de atuação do ícone Mike Dundee¹ e seus famosos facões.
Andar armado por aqui, sempre é uma boa ideia. Pensando nisso, a Viagens Tártaro disponibiliza treinamento aos visitantes através do pacote H.P.².
Falo por conhecimento de causa, na semana passada uma criança do meu bairro foi atacada por um morcego raposa³. Já viu o tamanho do bicho?
Imagine um grande cachorro com asas e presas afiadas, durante o dia os vemos pendurados como primos distantes do Drácula, envergando árvores.
As abelhas, símbolos de saúde devido as propriedades curativas de sua cera e do mel, aqui alimentam fobias. O veneno de nossas abelhas mata mais pessoas durante o ano que os ataques de tubarões que dilaceram os surfistas.
Sem falar de aranhas que parecem grandes shurikens do tamanho de mesas. Uma visão capaz de paralisar os mais corajosos.
O perigo rodeia até os mais pacatos habitantes, em um banho de mar você pode topar com uma imensa criatura translúcida, com tentáculos de três metros, nossa superlativa água viva. As marcas que deixam lembram grandes queimaduras, sem tratamento, seu coração e os pulmões param.
O pacote H.P. disponibiliza antitoxinas para aproximadamente 70 tipos de veneno, guias e monitores que acompanham os visitantes todo o tempo e vasculham os quartos a noite procurando insetos, répteis e mamíferos hostis.
O clima de terror é garantido desde o momento em que o visitante desce do avião. Segundo especialistas a abundância de animais letais por metro quadrado supera qualquer outro país.
Dúvida?
Qualquer busca na rede mostrará estas horrendas maravilhas, se procura por emoções fortes, pesquise fotos dos singelos animais de que falei.
E o bônus, não são só os animais. Antigamente, nosso continente servia de imensa colônia penal e local para onde expurgavam indesejados, com o passar dos anos ocorreu a proliferação dos mais diversos crimes.
Os desaparecimentos fazem parte de nosso cotidiano, o clima e nossa disposição geográfica facilitam as atividades de assassinos em série em atividade em nosso solo.
E você pensando que seria radical viajar pro sul dos EUA nesta época do ano.
Acredite, lá nessa época se é capaz de fritar bifes nas ruas.
Aqui, você sua família, podem ser assados sem proteção, com os rigores de nosso verão.
 E se isso não é um desafio até pro Crocodilo Dundee, eu não sei o que é.
Visite nossa ex colônia penal, visite a Austrália pela Viagens Tártaro!




Publicado no site Recanto das Letras em 21/10/2018.


Extras e referências:

1 - 

2 - 

3 - 

4 - Tártaro cia, empresa sombria envolvida nos mais escabrosos empreendimentos, de testes ilegais de medicamentos a chacinas. Assombra vários contos do autor, entre eles, seu conto irmão A Propaganda.

terça-feira, 24 de julho de 2018

Pior do que eu




PIOR QUE EU, você é pior do que eu. Eu me levanto rasgado, sangrando, coberto de porra, cheio de suor, sem rosto.
Esperando que alguém creia, esperando um dia, por uns dias ter lábios para foder, para beijar, para sorrir.
Enquanto procuro um rosto, busco alguém que não quer um rosto. Alguém que quer ser um anônimo de manchete, facilmente esquecido, que tenha um grande ato apenas.
NÃO ACHAVA QUE FUNCIONARIA DE NOVO mas vocês sempre querem agir como os animais que são. Quando pensam em um ato sórdido acrescentam mais e mais detalhes em cada vez. O PROCESSO JÁ COMEÇOU, você quer vivenciar o estupro, quer sentir a pressão da arma ao dar um tiro em alguém. NÃO LUTE, a sociedade é a jaula de vocês.
Os animais selvagens que são confinados em celas adoecem, morrem ou ficam loucos. RELAXE!
VOCÊ ME acha tolo escrevendo isso mas REPETE E REPETE tudo o que está na página NA SUA CABEÇA.
EU FICO impressionado com a força que desconhecem ter.
Faça um teste, fale para um amigo que adora torta de frango que tal alimento é insosso. Diga pra ele todos os dias. No final, o pensamento será CADA VEZ MAIS FORTE.
PAREÇO CADA VEZ MAIS HORRÍVEL!
E aposto contigo que a cabeça de seu amigo transformará a deliciosa torta de frango numa comida indigesta.
SUA CABEÇA VERÁ e de antemão provará todas as tortas de frango do mundo e as vai comparar a UM MONSTRO INIMAGINÁVEL.
E PARA HONRAR SUAS EXPECTATIVAS o paladar vai enganá-lo e ele sentirá um gosto de papel quando comer uma suculenta torta de frango.
EU VOU ME FORMANDO nos pequenos detalhes, na palmada extra no filho birrento, na puxada de cabelo mais forte durante a foda, na palavra atravessada para seu colega de trabalho.
Sempre PERTO DE ONDE VOCÊ ESTÁ!
EU BUSCO ALGUÉM que quer sair da jaula, alguém que você rotula como verme, em uma intensa procura COMO EU. DISPOSTO A UMA TROCA de sua tediosa rotina por um momento de jaula aberta.
Mesmo que isso signifique outra jaula no futuro ou a não existência.
SABE O ARREPIO QUE SENTE QUANDO ESTÁ SOZINHO?
É o animal querendo sair!
Você ficará grato QUANDO EU ESTIVER ATRÁS DE VOCÊ.
O prazer? ELE SERÁ PERMANENTE.
TENTE APAGAR da mente o que está lendo. Você não vai conseguir, é igual ao teste da torta com o amigo.
Quando tentam desesperadamente apagar algo da mente, esse pequeno algo vira o monstruoso algo.
O pensamento recorrente? Ele será permanente!
MAS DEIXA QUE EU COMANDO TUDO. Deixa que eu diga coisas que a sociedade não quer que você pense, mas que está maluco pra fazer.
COMO EU SEREI PRA VOCÊ?
Quando você matuta no pior que você poderia ser, no pior que poderia fazer, como está seu rosto?
Como está seu rosto ao ocultar UM CORPO PODRE?
Ou quando não quer que o vejam MUTILADO?
Quando ri em segredo de um sujeito INFESTADO DE TUMORES?
Como está seu rosto ao ver um corpo COBERTO DE VERMES? Quando pensa que bom que não sou eu.
Como está seu rosto?
Eu, eu não tenho rosto. Mas TE FAREI VER...
O MUNDO sempre foi podre. Explique a histeria em massa, uma ideia é difundida em um grupo de pessoas. Então vocês queimam mulheres “bruxas” e lincham negros.
Eles são como a torta de frango.
Vocês são animais dementes que suplicam por uma jaula e isso os deixa loucos.
SE EU QUISER me levantar, ascender, ter presença, preciso de alguém que queira ser um feliz membro da horda de animais soltos.
Enquanto isso você irá procurar uma razão pra viver. Um dia alguém encherá sua cabeça com políticas de direita. 
Achando-se dono de si VOCÊ IRÁ PRA DIREITA.
Sua atenção me tornará tangível, pleno, preenchido, uno, completo SE EU QUISER.
Não resista; comente, escreva, fale de mim. Discurse sobre o sem rosto.
E quando me sentir irá questionar sua saúde mental.
VOCÊ IRÁ procurar ajuda com seu pai de santo, com seu padre, com um médico.
E noutro dia alguém te encherá a cabeça de políticas de esquerda.
PRA ESQUERDA, você vai se arrastar.
Toda mensagem tem um propósito, mesmo as que parecem inocentes. Como a vontade de apertar mais a coleira de um cachorro que quer ganhar a rua.
A respiração sob estrangulamento do bicho é justificada pra você?
E NO FINAL fincarei meus pés no seu cérebro. E buscará me esquecer NAS ÚLTIMAS LINHAS.
SEREI UMA DESCULPA para que acenda as luzes e que vasculhe a casa. Quando a coisa mais perigosa dentro dela é você.
Afinal, eu não tenho rosto para ser encarado.
PRA FAZER o que quero, para ganhar por um tempo um semblante tenho que ser eficiente em minha mensagem.
O QUE VOCÊ REALMENTE QUER agora é afogar sua besta, estrangular o bicho em você.
Você sabe que em algum lugar perto surge um ferimento e depois um braço. Pode sentir no barulho do cômodo próximo minhas pernas recém aparecidas em passos erráticos.
Você pode sentir. SENTE O ARREPIO?
EU me esgueiro procurando por você.
Então ESTOU PERTO, perto o suficiente para sentir a vibração de seu coração acelerado.
Eu não tenho rosto, me sinto bem NO ESCURO.
Tente.
VIRE-SE após terminar a mensagem para devagar descobrir outra mensagem nas grandes palavras. Mas termine de ler antes de voltar ao começo.
E ME SAÚDE por meu êxito. Faremos o que você quiser, você não quer mais se encarar NO ESPELHO, não é?
VOCÊ É PIOR DO QUE EU.



Publicado no site Recanto das Letras em 24/01/2016.







sábado, 24 de fevereiro de 2018

Inefável


“A melancolia da paixão arrebatadora é o sentimento de existência efêmera e urgente”


1 – O parlamento da chuva

Foi durante o outono.
As montagens dele eram excepcionais, um imenso sucesso de crítica e público. Todos queriam um pedaço de Raul, o cultuado Raul¹.
Tinha lenda de uma personalidade complexa, metódica, repleta de contornos míticos. Era cheio de manias e tiques, diziam que era versado em diversas áreas.
Quando consegui o papel em sua adaptação para o teatro de Pensamento Atropelado sabia que era a chance da minha vida.
Imagine só uma atriz fresca prestes a estrear trabalhando com ele, um bilhete de loteria sorteado. Nos primeiros dias a ansiedade para conhecer o diretor quase me consumiu. Para agravar a situação ele tinha aplicado um de seus habituais sumiços.
Duravam sempre uma semana.
Então esperei os dias, mordendo os lábios, para ver a mente corajosa de Empalando Freiras Virgens.
Começou uma chuva forte numa tarde e eis que surge ensopado nas portas do teatro. Apolíneo e dionisíaco em si, pediu enquanto mastigava suas balas de goma.
- Podem me encontrar lá fora?
Boquiaberto, o elenco acompanhou a força de sua figura e fomos de encontro ao brilho dos raios. Em poucos segundos todos pareciam que tinham saído do mar. Alguns rostos demonstravam raiva e descontentamento, Raul sentou-se ao meio fio e com sua voz grave e a risada característica solicitou:
- Sentem-se comigo, apreciem a chuva!
Ele estava ali em seu bruto, um vanguardista brilhando na rua encharcada, naquele momento todos os presentes sorriram olhando o criador, que sentia milhares de gotas como abraços calorosos.
Fizemos um círculo na calçada e apreciamos a chuva, apreciamos nossas pessoas, apreciamos a arte.
E dali em diante torcíamos para que chovesse para mais um parlamento da chuva.

Natalia Gomes, atriz revelação vencedora do prêmio Esplendor.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Fim do expediente



"Seja bom, pelo amor de Satã... seja bom!"


 Todos os dias Yves acordava cedo. Os olhos cansados contemplavam o rosto acabado.
 Murmurava para o espelho sua oração:
 - Patético.
 E andava rápido em seu patético carro, enfiava-se no engarrafamento patético para chegar ao emprego igualmente patético.

 O dia passa entre as malditas ligações. Subemprego, soa como deve soar. A comida da lanchonete o fez engordar, a rotina o tornou ansioso.
 Duas décadas e meia de uma vida insignificante. Sentado, com o fone ao ouvido sentindo a existência escoar lentamente.
 Acostumou a atender os mal-educados que costumavam ofender sua adorável mãe todos os dias. Era gentil e bom com os novos funcionários que iam aprender o ofício com ele.
 Estava acostumado a ouvir:
 - Como você aguentou ficar três anos neste inferno?
 Respondia automático:
 - Não é tão ruim quando se acostuma.
 Quando se acostuma a destruir o orgulho, seus ouvidos, sua voz. Quando se acostuma a ver os puxa-sacos ganharem puxa-sacos ao subirem de cargo.
 Acostuma-se a ganhar dinheiro para instituições que claramente o viam como algarismo.
 Um número de funcionário.

 Ia começar a seleção interna para escolha do funcionário do mês, se ganhasse lhe dariam um broche idiota. Seu nome enfeitaria uma folha de sulfite imbecil.
 Poderia usufruir de uma folga bônus.
 Uma.

 Neste mês, ele cumprira os requisitos básicos da eleição. Para ser elegível o candidato não podia ter faltas injustificadas e advertências.
 No mês anterior Yves teve de assistir Willian se tornar o funcionário do mês.
 Willian, que tinha a supervisora em boa conta, que escondia suas faltas com resultados em vendas, que era um supremo lambe-botas. Um safado protegido.
 Yves faltou uma única vez no mês anterior por uma emergência familiar. Explicou tudo a supervisão e ganhou uma advertência.

domingo, 21 de janeiro de 2018

Um pedaço de mau caminho






 1 - Desgraçado


 Nasceu com olhos azuis e parecia...
 - Um anjinho.
 Essa foi a frase da mãe ao ver o bebê, para piorar a situação o bastardinho veio com cabelo loiro e ganhou nome de anjo.
 - Vai se chamar Gabriel.
 Dã.
 Mais típico impossível, desde o começo foi mimado. O pequeno gordinho mal saiu do hospital e era convidado a fazer comerciais. E foi enriquecendo os pais ainda sem saber limpar a bunda sozinho.
 Foi crescendo e habituando-se a receber de pronto seus desejos. Com oito anos, descobriu o valor de um rosto para o mundo.
 Estava na escola e roubou o giz colorido do Paulinho, a professora descobriu e veio tirar satisfação.
 - Gabriel. Isso não se faz...
 Ainda nem tinha beijado alguém e descobriu o cinismo.
 - Mas professora esse giz é meu.
 O Paulinho tinha um histórico horrível, batia em todo mundo e ferrava tudo mas ladrão, ladrão não era.
 - Ele tá mentindo professora!
 Doeu no querubim ser contrariado em sua farsa.
 - É meu sim. É meu sim.
 Começou a chorar como um rio, chorava de raiva.
 Vendo que o artifício não funcionava apelou, partiu para pancadaria. Nunca havia batido em ninguém. Talvez por isso tenha sido tão brutal, tão primitivo. Pegou o parrudo Paulinho de surpresa, este caiu para trás e perdeu dois dentes.
 Paulinho levantou com olhos de um carniceiro. Num salto avançou sobre o anjinho.
 Mas um braço forte o conteve de sua satisfação imediata. Era o diretor da escola que passava por ali.
 Gabriel levou sua mentira até as últimas consequências, como reparação, Paulinho foi expulso da escola.
 Neste mesmo dia esperou a saída de Gabriel da escola. Mas os pais do modelo-mirim foram buscar.
 - Não deixo mais meu filho nesta escola de ladrões.
 Sentenciou a mãe e o mudou para a melhor escola paga da região.
 Já o Paulinho; além de perder dois dentes levou uma surra ainda maior do Paulão, o pai, que era famoso por ter mão pesada e praticar boxe no filho.
 - Acho que o Gabriel vai precisar de terapia depois desse trauma, ele ficou tão mal que até bateu no ladrãozinho.
 A terapia do Paulinho pra aprender a não mexer com anjos foi de vários hematomas pelo corpo.
 Gabriel. Boa aparência, bem de vida, requisitos essenciais para surgir um desgraçado.