“A melancolia da paixão arrebatadora é o sentimento de
existência efêmera e urgente”
1 – O parlamento da chuva
Foi durante o outono.
As montagens dele eram excepcionais, um imenso sucesso de
crítica e público. Todos queriam um pedaço de Raul, o cultuado Raul¹.
Tinha lenda de uma personalidade complexa, metódica, repleta
de contornos míticos. Era cheio de manias e tiques, diziam que era versado em
diversas áreas.
Quando consegui o papel em sua adaptação para o teatro de
Pensamento Atropelado sabia que era a chance da minha vida.
Imagine só uma atriz fresca prestes a estrear trabalhando
com ele, um bilhete de loteria sorteado. Nos primeiros dias a ansiedade para
conhecer o diretor quase me consumiu. Para agravar a situação ele tinha
aplicado um de seus habituais sumiços.
Duravam sempre uma semana.
Então esperei os dias, mordendo os lábios, para ver a mente
corajosa de Empalando Freiras Virgens.
Começou uma chuva forte numa tarde e eis que surge ensopado
nas portas do teatro. Apolíneo e dionisíaco em si, pediu enquanto mastigava
suas balas de goma.
- Podem me encontrar lá fora?
Boquiaberto, o elenco acompanhou a força de sua figura e
fomos de encontro ao brilho dos raios. Em poucos segundos todos pareciam que
tinham saído do mar. Alguns rostos demonstravam raiva e descontentamento, Raul
sentou-se ao meio fio e com sua voz grave e a risada característica solicitou:
- Sentem-se comigo, apreciem a chuva!
Ele estava ali em seu bruto, um vanguardista brilhando na
rua encharcada, naquele momento todos os presentes sorriram olhando o criador,
que sentia milhares de gotas como abraços calorosos.
Fizemos um círculo na calçada e apreciamos a chuva, apreciamos
nossas pessoas, apreciamos a arte.
E dali em diante torcíamos para que chovesse para mais um
parlamento da chuva.
Natalia Gomes, atriz revelação vencedora do prêmio
Esplendor.
2 – As preferidas
Falar sobre o amigo da minha vida é fácil.
Eu estava em frangalhos.
Era meu auge de ator, cheguei a trabalhar com o Alexandre,
um dos preferidos de Raul, o fim dele foi mais sombrio que o meu.
Raul gosta de vivenciar o crescimento de seus elencos. Seu
conhecimento é grande e sua aparência esconde sua idade. Sem dúvida ele é mais
velho do que parece, conversar com ele é aprender sempre uma coisa, qualquer
coisa. Formado em Direito, Letras, Artes, Filosofia e História, possui outros
diplomas, mas destes tenho confirmação.
As internações no Santa Clara também são verdadeiras, se
internou voluntariamente quatro vezes e foi internado outras três. Raul estava
obcecado com a carta dos Enamorados, uma cartomante disse que ele passaria por
provações e teria escolhas difíceis. Tirou a carta de seu tarô e guardou como uma
lembrança amarga, mais uma mania para uma pilha.
Anos atrás uma amiga em comum foi assassinada brutalmente
por um motivo fútil, morreu pois era incapaz de sorrir para o agressor. Aquilo
arrebentou o Raul e o levou a uma das visitas ao Santa Clara², já autor famoso.
Ele enveredou pelos corredores daquele lugar maldito e
conheceu alguns desiquilibrados com quem trabalharia depois.
Nos reencontramos, me jurou que não deixaria algo de ruim
acontecer com seus amigos. O artista marginal estava mais à beira da sociedade
do que nunca. Nesta época seus textos e intervenções eram ainda mais
distorcidos. Botava discos do Ruptura para tocar e criava por horas a fio.
Eu já havia acompanhado de perto cada um de seus colapsos,
preocupado com meu amigo, seguia seus passos.
E então, esqueci de mim.
Retornei uma madrugada para casa e dormi ao volante, meu
rosto foi destroçado na capotagem.
Perdi parte do maxilar, o nariz, a língua foi quase toda
triturada pelos dentes, o rosto que você vê hoje já esteve bem pior. Quando
acordei no hospital o vi banhado em lágrimas ao meu lado, culpava-se
imensamente pelo meu acidente.
Me seguiu na lenta recuperação, de perto constatou minha
ruína quando o médico deu mais uma punhalada. Eu nunca mais poderia sentir o
gosto das coisas. O rosto de Raul era o retrato da angústia, amassava a carta
de tarô que tirou do bolso.
Estava ali a encruzilhada, voltar ao delírio reconfortante
do hospício ou me ajudar a superar minha horrível realidade.
Meu amigo optou por mim.
Raul passava tardes comigo, estava presente em cada retorno
de cirurgia reconstrutiva, me amparou a lidar com a transição da fala para a
exclusiva comunicação por textos.
Como este.
Eu sempre fora glutão, depois do acidente perdi a fome de
tudo. Ele provava cada papa oferecida por canudo e me descrevia o sabor.
Os dias foram passando, ele me lançou forças para retornar
ao trabalho, me tornei um novo ator, nasci de novo no teatro sem verbalizar. O
sucesso me abraçou novamente, ele me incentivou a não usar máscaras no palco.
Elogiaram minha coragem que veio por Raul.
Por Raul!
O que doía era não sentir o gosto da comida e sabores, minha
nova vida. Meu amigo estava ali, ditando sabor e nuances nas minhas refeições
monocromáticas. Um belo dia eu sugava o liquido vermelho do copo plástico e ele
me falava dos detalhes de uma bela vitamina de morango. Não pude conter o
espanto, eu senti! Fisicamente, senti o sabor doce e ácido dos morangos.
Voltara meu paladar!
Imediatamente Raul entendeu o rio de felicidade que escorria
pela face machucada. Imensamente feliz, meu amigo me deixou por mais sete dias.
Retornou magro, abatido.
Me confessou que perdera o gosto na boca quando recuperei o
meu sentido. Toquei o seu ombro, escrevi na folha de papel que o ajudaria em
sua bizarra questão.
À mão eu possuía algumas balas de goma e as empurrei pra
ele. Começou a mordiscar as balas e como por mágica, como um bebê descobrindo
os doces, Raul gargalhou e me deu um abraço.
“Tutti-frutti, morango, uva! Eu sinto tudo!”
E nunca mais deixou os bolsos sem suas balas preferidas!
Fritz Hadden, ator, cinco vezes premiado com o Konstantin.
Em relato cedido por e-mail.
3 – Espírito de época
Como crítico já vi, ouvi e li muita merda.
Mas vez por outra, pus meus sentidos à prova por obras
arrebatadoras. É como uma prateleira de sebo em que podemos encontrar diversos
livros inúteis de auto ajuda e um Poe inserido ao meio.
Uma pérola no marasmo.
A obra de Raul desnuda e retrata um espírito de época, esse
enfant terrible do teatro moldou com o choque, com o sentimento, a encenação em
nossos tempos.
Sua personalidade caótica e apaixonada mostra um artista à
mercê e militante de sua arte. Um guerrilheiro rompendo paradigmas de seu meio.
Ele ousou lançar uma peça com teor anti-religioso na cidade
com maior número de cristãos por metro quadrado.
Defendeu causas por amor aos amigos.
Opôs-se a toda forma de autoritarismo, atacando críticos
reacionários e a mídia especializada.
Me justificou suas passagens pelo famoso manicômio Santa
Clara com uma frase brilhante.
“Eu preciso de ajuda as vezes e você também!”
E todos nós, amantes das artes, devemos temer cada um de
seus sumiços.
Afinal, quando será o último?
Natanael Dantes, colecionador e crítico literário,
atualmente internado no hospício Santa Clara.
4 – Amor em movimento
Raul é amor.
Sei que não era a única, ele mesmo deixava claro pelas suas
atitudes mas me tratou como nenhum outro. Dedicado, apaixonado, conseguia me
deixar bem mesmo quando desaparecia.
E os bilhetes?
Raul deixava bilhetes com sonetos, contos e crônicas
exclusivas e eram belos como toda a sua obra.
Não é segredo que o vi nas piores condições possíveis, certa
vez veio a minha porta temporariamente cego. Fritz o deixou a pedido dele, Raul
me disse que precisava descansar ao meu lado. Numa tarde me olhava como se
nunca tivesse me visto, passou o dia elogiando meus cachos, a curva das minhas
covinhas, meus dentes, comparando tudo a quadros neoclássicos.
Sempre me perguntam sobre isso, especulam sobre privações
sensoriais de artistas marginais, uma forma de enxergar o mundo com outro
prisma.
Disso posso falar pouco mas talvez os ajude.
Nada era fingimento!
Outra vez Raul aportou a minha casa completamente surdo. Era
a primeira vez que acompanhei a situação, cheguei mesmo a bater palmas atrás
dele me esgueirando pela casa para assustá-lo só para me certificar que ele não
mentia.
Dias depois ele gritou.
Corri para ver o que tinha acontecido e ele desembestou a
falar.
“Quão grave é minha voz?”
E me pediu que eu falasse, perguntei sobre o quê e ele
respondeu:
“T-a-t-i-a-n-a, sobre qualquer coisa”.
Ali nasceu o nosso amor, ele me disse que minha voz tinha
uma entonação agradável e discursamos sobre toda a arte que gostávamos, ele
falou menos que eu, maravilhado por me ouvir.
Ninguém elogia como Raul, ele espalha o que nele não cabe
mais.
Depois pediu para ouvir minha música, estava todo arrepiado,
as lágrimas desciam sobre aquele senhor sorriso dele.
Sempre que ele some me procuram.
Posso oferecer pouco de Raul pois ele ecoa em mim, não
importa com quem eu esteja.
Raul é amor!
Tatiana Pieltrin, pianista renomada, membro fundador de A
torre uma confraria de artistas.
5 – Como Salieri
Raul.
Quem ele pensa que é, nome único não é mais vanguarda,
estava ai o Prince pra confirmar.
O conheci anos atrás, rodeado de imbecis babando seu ovo.
Surgiu como uma “revelação” bagunçando o status quo do meu meio.
Minhas peças tinham uma base consolidada de apreciadores,
quem era Raul?
Um retardado compulsivo que soletrava coisas com sete
letras? Um assassino do estilo fingindo ser “despojado” com terno e tênis?
Todas as anteriores.
Confesso; fui de óculos escuros e chapéu para assistir
Empalando Freiras Virgens. Três atos de barbaridades, atores deslocados,
péssima escolha de elenco, falhas até nas músicas escolhidas.
É absolutamente incompreensível o sucesso atribuído. Me dê
um único ato e faço melhor.
Fiz minha parte quando questionado, apontei cada erro da
montagem mas ninguém me ouviu, a maldita mídia me apontou como “O Salieri de
Raul”, fui execrado.
Então, minha carreira começou a desabar, empreguei boa parte
do meu dinheiro investigando aquele usurpador, aquele impostor de sorte.
Essa entrevista vai constar nessa, nessa... reportagem sobre
ele, não é?
Então vou jogar a merda no ventilador!
Sabe porquê Raul vez ou outra vai para o Santa Clara?
Pois o fodido do pai dele é interno antigo!
Há tempos que eu sei que as internações são jogadas de
marketing. Ele passa as férias com o papaizinho no hospício. Vá até lá e
procure por Getúlio Inger, ele deve estar babando em seu quarto agora mesmo.
O motivo de chamar você, de conceder essa conversa é para
denunciar que Raul me fodeu! Eu fui sondado por um conglomerado chamado Tártaro
para informações sobre ele, fui amparado financeiramente por eles por um ano e
meio.
Consegui realizar a montagem de duas peças mas o sucesso não
veio...
Na semana passada deixei escapar em outra entrevista injusta
quem me financiava, hoje de manhã recebi a visita “ilustre” do salvador do
teatro. Raul veio aqui hoje me alertar sobre escorpiões!
O botei pra fora, berrei que fosse fazer suas ceninhas de
delírio para os trouxas que acreditam.
S-C-O-R-P-I-O!
Dã.
Maldito oportunista.
Piero Cunha, diretor de teatro, encontrado morto dias após
essa entrevista, o crime permanece sem solução.
6 – Abraços
Eu sou uma alma velha, também sou o pai do Raul Inger.
Você conhece meu filho?
Foi um jovem intransigente e terrível, tive de buscá-lo nas
delegacias algumas vezes.
Você me acha louco?
Fui um pai ruim durante o crescimento de Raul, o castiguei
demais, praguejei demais, o moldei para ser como eu.
Flora era adúltera e insuportável, eu a estrangulei após dar
uma surra no meu filho. Ela tentou interceder por ele, eu ia matá-lo naquele
dia, tinha o deixado desacordado. Traí minha fé.
Quando ela pulou na minha frente fechei as mãos em seu
pescoço e quando a polícia chegou com a denúncia dos gritos eu ainda apertava.
Disseram que eu estava enganado a respeito dela, não acreditei, busquei minha
fé para suportar meu fardo, um Calusari mesmo ruim, sempre será Calusari.
Depois de tudo ele me visitou, queria entender o que me
levou a esse quarto acolchoado. Os médicos desconfiam que sempre fui
esquizofrênico, vez ou outra imagino um mundo nesse espaço exíguo.
Eu dei uma cabeçada no meu filho quando ele veio a primeira
vez. Soube que ele foi preso por agressão nesta época. Ele não parou de me ver.
Tentei mordê-lo uma outra vez e ele me abraçou. E quando me
abraçou algo dele saltou em mim.
Fiquei arrasado por uma semana inteira.
Aqui nesse quartinho, minha nova casa, entendi o que Raul é
para o mundo!
Disse aos doutores e pelas caras deles deduzi mundos a mais
de terapia e montanhas de anti-psicóticos.
Quando encontrei a verdade me deram o atestado vitalício de
doido de pedra!
Meu filho é uma criatura talentosa e iluminada, um mártir
moderno. Teve escolhas ruins mas as suplanta por escolhas boas. Eu o criei num
molde deformado.
Meu molde.
Mesmo assim ele me abraçou.
Fiz uma nova criação, despejei tudo de bom no rito e
enderecei a Raul. Por sete dias renasceu, por sete dias não escutou, não viu,
não sentiu toque, não ouviu e não degustou. Raul estava vivo pela respiração e
os batimentos cardíacos.
O mandaram para o hospital e desconfiaram de um estado
catatônico pós traumático. Eu criei meu filho de novo pois devia o melhor pra
ele.
Não vai encontrar provas desta história, a ciência já deu
seu veredicto e me julgou. Quando ele retomou os sentidos no sétimo dia sua
genialidade o abraçou também.
E foi criar por aí, foi encher as pessoas de espanto, de
inteligência, foi encher elas de amor!
Quando encontra os que não acreditam prova que tudo é
possível e toma pra si a dor, Raul é o maior empata de todos.
E te digo, toda vez que me visita me dá um abraço quente e
por uns instantes não sou o pior pai do mundo.
Sou um homem orgulhoso.
Nunca vou sair daqui e não dou a mínima pra isso.
Meu filho pode ir aonde quiser!
Getúlio Inger, pai, interno no quarto 502 no hospício Santa
Clara.
7 – Quem é Raul?
Há tempos a redação da Faces prepara uma reportagem sobre
Raul.
Me encarreguei da missão de juntar entrevistas para decifrar
sua personalidade. Os depoimentos deixaram mais perguntas do que respostas.
Raul é uma figura ímpar presente em diferentes narrativas, cada conto em que
aparece expõe uma nova faceta espantosa do artista.
Os entrevistados por si só compõem uma galeria extravagante:
um acólito do famoso parlamento da chuva, um peculiar amigo íntimo, dois
insanos clínicos, uma poderosa amante e um detrator formam um grupo de
personagens tocados pelo seu talento artístico e apelo humano.
Encontramos o astro na véspera de lançamento desta
reportagem (que foi expandida com este posfácio), Raul foi internado após a
estrondosa estreia de sua bela adaptação de Laço Rompido.
Escrevo estas linhas enquanto o observo pelo vidro do
hospital, descobri que sofreu um ataque cardíaco. Os laudos médicos anteriores
constatavam plena saúde.
Fritz o visitou acompanhado da atriz principal da peça, ela
muito sentida beijou os lábios do diretor adormecido, tocou o próprio peito e
tocou o peito dele. Mais um amor? Mais um enigma?
O que encerra aquele gesto?
Não há um método único para compreender a arte, todas as
ações, desvarios e loucuras de alguém tão complexo. Qual será o futuro de Raul?
Teremos uma melhora em sete dias?
Concordo com o que dizem: mais do que carne, somos compostos
de histórias.
E sinceramente, espero que a narrativa de Raul continue.
Augusto Floyd, redator da revista de arte Faces.
Extras e referências:
1 - Raul, enigmático personagem que perambula pelos contos do autor ganha aqui uma origem insana. Ele é dramaturgo, filósofo, advogado, escritor, viciado em balas de goma, obsessivo com o número 7 e completamente louco.
2 - Santa Clara, hospício fictício, casa de vários de seus personagens.
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