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"Escabroso, delirante e assustador! Perfeito!" Por Drauzio Marqezini em 12/04/2012 no site Recanto das Letras.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Fim do expediente



"Seja bom, pelo amor de Satã... seja bom!"


 Todos os dias Yves acordava cedo. Os olhos cansados contemplavam o rosto acabado.
 Murmurava para o espelho sua oração:
 - Patético.
 E andava rápido em seu patético carro, enfiava-se no engarrafamento patético para chegar ao emprego igualmente patético.

 O dia passa entre as malditas ligações. Subemprego, soa como deve soar. A comida da lanchonete o fez engordar, a rotina o tornou ansioso.
 Duas décadas e meia de uma vida insignificante. Sentado, com o fone ao ouvido sentindo a existência escoar lentamente.
 Acostumou a atender os mal-educados que costumavam ofender sua adorável mãe todos os dias. Era gentil e bom com os novos funcionários que iam aprender o ofício com ele.
 Estava acostumado a ouvir:
 - Como você aguentou ficar três anos neste inferno?
 Respondia automático:
 - Não é tão ruim quando se acostuma.
 Quando se acostuma a destruir o orgulho, seus ouvidos, sua voz. Quando se acostuma a ver os puxa-sacos ganharem puxa-sacos ao subirem de cargo.
 Acostuma-se a ganhar dinheiro para instituições que claramente o viam como algarismo.
 Um número de funcionário.

 Ia começar a seleção interna para escolha do funcionário do mês, se ganhasse lhe dariam um broche idiota. Seu nome enfeitaria uma folha de sulfite imbecil.
 Poderia usufruir de uma folga bônus.
 Uma.

 Neste mês, ele cumprira os requisitos básicos da eleição. Para ser elegível o candidato não podia ter faltas injustificadas e advertências.
 No mês anterior Yves teve de assistir Willian se tornar o funcionário do mês.
 Willian, que tinha a supervisora em boa conta, que escondia suas faltas com resultados em vendas, que era um supremo lambe-botas. Um safado protegido.
 Yves faltou uma única vez no mês anterior por uma emergência familiar. Explicou tudo a supervisão e ganhou uma advertência.


 Segunda feira.

 A supervisora marca uma reunião após o horário de trabalho para não comprometer a operação. Óbvio.
 Mostra os gráficos dos resultados da equipe.
 Elogia o empenho de todos e dá destaque a posição de Yves e Willian.
 - Estão empatados e sexta feira é a eleição. Seus resultados são importantes agora, espero que a reunião sirva para uma disputa saudável.

 Terça feira.

 - Quero ganhar este mês! Tenho que tentar.
 A notícia de seu bom desempenho o fez sonhar com a vitória. Acordou mais cedo, não podia se atrasar nem um minuto.
 Qual foi sua surpresa ao verificar que seu carro tinha os quatro pneus furados.
 Pagou um táxi que demorou a chegar, gastou o que não tinha.
 - Cinco minutos de atraso Yves!
 Cobrou a supervisora. Enquanto o pacato patético se sentava podia notar na cara de Willian um sorriso de contentamento. Apesar das olheiras de quem havia acordado ainda mais cedo.

 Quarta feira.

 - Yves coloque uma pausa em seu equipamento. Quero falar contigo.
 Foi até a sala da supervisora esperando más notícias. Ou seria despedido ou seria um esporro.
 - Sente-se Yves.
 Sentou-se na sala em que entrara somente duas vezes, contando com aquela.
 - Recebemos uma reclamação de seu atendimento no Serviço de Apoio ao Cliente.
 Pasmo, solicitou que verificassem a ligação e a reclamação. Seu atendimento sempre foi inatacável.
 - Acalme-se, ouviremos a reclamação juntos.
 A supervisora rodou a gravação.

 - Diego, Serviço de Apoio ao Cliente, bom dia.
 - Bom dia, eu quero registrar uma reclamação!
 - Com quem falo senhor?
 Uma pequena pausa. Uma voz certamente familiar responde:
 - José.
 - E qual a reclamação senhor José?
 - Um funcionário de vocês, um tal de Yves. Perai que eu anotei o nome dele aqui... Yves Rodrigues. Ele foi mal-educado e arrogante comigo. Quando disse que queria falar com a supervisão ele desligou na minha cara!
 - Qual foi a data deste contato senhor?
 - Foi ontem!
 - O senhor lembra a hora...
 - Olha aqui moleque! Vão fazer algo ou não?
 - Sim a reclamação já está regis...
 - Então não enche o saco! E diz pra este tal de Yves que deve tratar os outros com respeito. Passar bem!
 Final da ligação.
 Yves coçava os braços visivelmente nervoso, conhecia a voz. Disse para a supervisora:
 - Eu quero ouvir a ligação que deu origem a reclamação.
 - Não foi possível encontrá-la Yves, até o momento.
 Lógico. A ligação que deu base a reclamação não existia.
 - Meu dever foi só de te comunicar. E te avisar para que se policie quanto as suas futuras ligações.
 Yves esboçou um ligeiro sorriso.
 - Significa que ainda participo da eleição?
 - Sim.
 - Então devo voltar a atender senão perco vendas. Posso ir?
 A supervisora abriu a porta para que ele saísse.
 - Você ganha, eu ganho, a empresa ganha.
 Ajeitou as duas canetas no bolso da camisa e saiu. Ao passar pela mesa de Willian foi puxado.
 - Enquanto você estava lá dentro eu fiz oito vendas. Há há há... passar bem Yves.
 O que ele poderia fazer além de coçar os braços e ajeitar suas canetas no bolso?
 Nada. E foi o que fez sentado em sua cadeira esforçando-se para vender como um filho da puta até o fim do dia.
 Não foi o bastante.

 Quinta feira.

 Não dormiu, passou a madrugada pensando no que fazer. O mundo era injusto.
 Era o território dos espertos que pisavam nas cabeças dos fracos. O mundo era a casa de Willian.

 Olhava-se no espelho.
 - Patético.
 Era o que sua aparência passava, os óculos de grau, as duas canetas no bolso da camisa. O cabelo penteado sempre do mesmo jeito. Insegurança de mudar.
 Alguém que pedia por uma voadora.
 Willian?
 Ia de ressaca trabalhar, cantou duas a cada três mulheres dali, passava casualidade como ponto positivo.
 Alguém que daria uma voadora com gosto.
 "Mas eu não posso ser como ele."
 Desistiu de mudar, ganharia a eleição dentro das regras. Iria trabalhar mais cedo e sairia mais tarde.
 As horas extras pareciam a solução.

 Começou as ligações sem nem tomar café. Seus números subiam.
 Willian chegou atrasado e começou a ligar também.
 O dia passou.
 Fim do expediente, Willian levantou rápido mas deteve-se na saída. Percebeu que Yves ficaria, voltou a sua mesa e continuou a ligar.
 Numa pequena pausa foi falar com Yves.
 - Quanto tempo mais vai ficar?
 Yves pediu um momento ao cliente na ligação.
 - Só liberam quatro horas extras por dia.

 Dez minutos antes do término da quarta hora. Yves levantou-se.
 "Fiz tudo o que podia, estou cansado."
 Satisfeito, foi ao banheiro. A eleição seria no outro dia.
 Além de Willian não havia mais ninguém por ali. Claro, havia só o porteiro do prédio.

 Urinava em paz quando Willian abriu a porta.
 - Eu vou ganhar amanhã Yves.
 Yves sentiu uma estranha sensação, era confiança.
 - Sou tão bom quanto você Willian.
 Foi até a pia e lavou o rosto.
 - Está confiante? Há há há isto é bizarro até pra você.
 Yves estava calmo. Virou-se e respondeu:
 - Ainda dá para vender bastante amanhã caso eu não tenha conseguido te passar hoje.
 Willian riu grotescamente. Yves ajeitou as duas canetas no bolso e foi saindo do banheiro.
 - Yves!
 Deteve-se sem virar para Willian.
 - Eu comi nossa supervisora seu babaca! Amanhã eu vou pegar aquela porra de broche, o presidente da empresa vai apertar minha mão, vão tirar uma merda de foto de mim segurando aquela folha de sulfite.
 Tentou manter-se, só ouvir. Coçava os braços com força.
 "Vá embora!"
 - E você se matou de trabalhar por isto!
 "Cala a boca Willian!"
 - Veio mais cedo e o escambau, mesmo com o carro com os pneus arriados...
 "Cala a boca Willian."
 - Continuou sem se abalar mesmo com a reclamação que recebeu. Yves, aquela feiosa sempre deu bola e ontem eu apelei.
 "Cala..."
 - Eu só preciso aparecer amanhã.

 Sexta feira, Dia da eleição.

 Yves chegou atrasado. Estava sem óculos, o cabelo bagunçado. Vestiu a primeira roupa que viu e foi trabalhar. Uma camisa de botões amarrotada e calça jeans.
 Parecia de ressaca.
 Trabalhou de cabeça baixa, a supervisora o olhava parecendo desapontada.
 Seria sua aparência?
 Nada mais importava, Willian ganharia de qualquer jeito. Yves vendeu pouco durante o dia.

 Fim do expediente.

 - Pessoal, vamos anunciar quem é o funcionário do mês.
 A supervisora estava ao lado do presidente da empresa. O homem bem vestido tomou a palavra:
 -Os resultados individuais colaboram para o resultado global da empresa. Hoje, reconheceremos o trabalho de um de nossos colaboradores. Não podemos tolerar erros numa empresa tão grande, recompensaremos então os acertos. A funcionária do mês é... Yves Rodrigues!
 Yves ficou chocado, a supervisora foi até ele. Em meio aos aplausos ele falou baixo com ela.
 - Por que o Willian não ganhou?
 Ela parecia estranha.
 - Ele não veio hoje... tem uma falta então. Sabe se ele está bem?
 Yves começou a rir, valeu a pena trancá-lo no cubículo após ter feito o que fez. Pular o cubículo é que não foi fácil. Seus óculos se espatifaram no chão.
 - Não sei... ontem ele passou um tempão no banheiro.
 Ela tocou seu ombro.
 - Deve estar doente então.
 O presidente da empresa se aproximou, Yves perguntou:
 - O senhor me chamou de funcionária?
 O velho de cabeça alva respondeu:
 - Um pequeno erro... apenas. Tem caneta para assinar filho?
 Yves tocou o bolso.
 - Serve vermelha? Enfiei a azul no pescoço de um péssimo funcionário no banheiro.
 - O que disse?
 - Nada. Onde assino?
 O decrépito lhe mostrou a escrota folha de sulfite, Yves a aproximou do rosto e nada mais importou.
 Em negrito na maldita folha. "Para a funcionária Yves Rodrigues".
 Erro imperdoável. Yves agradeceu por ainda ter uma caneta.
 O funcionário do mês enfiou a caneta no olho do presidente.
 Não digam que não foi criativo, incentivado pela sua raiva conseguiu grandes resultados. Utilizou o que tinha a mão e matou oito pessoas antes de ser contido.
 Buscou o foco, exterminou os que lhe davam dores de cabeça.
 O funcionário do mês não faltou no dia após ter assassinado um companheiro de trabalho.
 E ganhou uma folga bem maior que a pretendida.

 Seu advogado disse que bastava bom comportamento para pedir revisão do caso, em uma década ou duas.
 Em resposta ele o estrangulou.

 - Os resultados não me interessam! Eu não trabalho mais.¹




"Que bom que a literatura exterioriza nossas vontades... Não, não quero matar ninguém, mas que dá vontade... Continue pondo no papel tudo o que temos vontade de fazer!"

Fabiano Rodrigues, escritor do site Recanto das Letras em comentário de 28/02/2011,





Extras e referências:




1 - O tema remete novamente a críticas ao mundo corporativo e seu mecanismo de depreciação do indivíduo e a insanidade.






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