Citações

"Escabroso, delirante e assustador! Perfeito!" Por Drauzio Marqezini em 12/04/2012 no site Recanto das Letras.

domingo, 31 de dezembro de 2017

Socializando




Ela precisava socializar, é o que todos diziam.
“Flávia, você fica no seu mundo e conversa com os outros apenas pela internet, precisa sair mais”
Sair mais, não ficar sozinha mais uma noite. O mundo é fugaz, não basta nossa própria companhia para todos.
“Você é tão bonita, devia aproveitar a vida”
E era bonita mesmo, não achava que desperdiçava a vida. Não gostava que os outros sequer pensassem nela.
O fato é que de tanto martelarem, de tanto falarem, de tanto encherem o saco e somando as malditas festas de fim de ano, conseguiram deixá-la deprimida.
Ajeitou seu cabelo curto e preto, botou o batom vermelho e saiu sem rumo.

Acabou parando no bar de um amigo de faculdade. O ambiente era patético, poucos solitários iam para a rua nas vésperas de festas.
- Todos com a família e os amigos.
Lhe respondeu o dono.
Foi aí que viu ele.
Ele parecia grande mesmo sentado no balcão, tinha um rosto mediano e uma bela barba. Os olhos eram a cereja do bolo, pousaram fixos nela.
“Eu espero que ele venha até aqui, nem a pau que vou lá”
Estava decidida, tomaria mais uma dose e se ele não fosse falar com ela iria embora.
Então ele sorriu pra ela, o choque foi tão grande que ela retribuiu com um “uh”!
“Espero que ele não tenha ouvido isso”
Já vinha em sua direção, ele cheirava bem.
- Está criando coragem para aparecer na festa?
A investida boba a fez corar.
- Não tenho festa pra ir.
Ele continuou com as frases tolas:
- Bonita assim e toda arrumada sem lugar pra ir? Qual é seu nome?
Não sabia se era o jeito ingênuo da chegada dele, ou o modo que olhava, daria uma chance:
- Flávia.
Ele passou a mão pela barba.
- Flávia, eu sou Ivan. Tenho um lugar para ir mas me falta companhia.
E estendeu a mão.
- Quer ir comigo? Não se preocupe, é aqui perto.
Ela fez uma cara de relutante.
- Lembrando que toda a rua é iluminada e tem várias pessoas perambulando indo para suas casas.
Ela riu.
Saíram juntos do bar.

A casa estava iluminada, havia pouco mais de uma dezena de pessoas ali. Flávia cruzou a porta e alguns conversaram entre si. Ninguém prestou a atenção nela e Ivan não a apresentou. O lugar fedia, justificado cheiro de festa.
De mãos dadas com Ivan não ligou. Tentaria socializar, haveria tempo para isso.
- Me diga o que você quer ouvir Flávia.
Ela pensou: Mas eu não conheço ninguém, e se não gostarem?
Ivan sorriu:
- Está na minha casa e vamos ouvir o que você quiser!
“Qualquer coisa que não seja pra baixo, afinal não estou sozinha, diga qualquer coisa menos Joy Division¹
E sua boca a traiu com o que queria de verdade:
- Joy Division.
O barbudo arregalou os olhos.
- Putz coloco com prazer, é uma das minhas bandas preferidas. Que coincidência.
E atravessou o grupo de pessoas para alcançar o som. Enquanto She's lost control invadia a sala ela permitiu balançar a cabeça e curtir de leve com as mãos.
Parecia que estava conseguindo.

O povo parecia não dar a mínima pra música. Para Ivan o que importava era Flávia, lhe trouxe uma taça de espumante devidamente gelado.
Então ele sentou ao seu lado, os outros convidados ficaram encarando, aquilo atraiu a atenção de todos.
- Você é um achado, sem sombra de dúvida.
Flávia pôde ouvir o cochicho do rapaz de camisa vermelha que estava próximo do sofá.
- Ele sempre diz isso...
Ivan chegava mais perto e já encostava a mão em sua perna.
- Flávia, Flávia. Parece que você é meu número, meu número da sorte.
E aí a magia se perdeu, ele veio como um carro desgovernado para cima dela. Avançando o sinal e adentrando sua boca.
Todos olhavam enquanto ela colocou as mãos no peito dele, tentando afastar o grandalhão.
“Ninguém vai me ajudar?”
De repente ele pareceu sentir as pequenas mãos e se afastou com o rosto perturbado.
- Desculpe, é que passo muito tempo sozinho e não sei como agir.
O rapaz de vermelho olhou para Flávia:
- Sempre a mesma desculpa, aff!
Ivan se levanta.
- Vou pegar mais alguma coisa pra bebermos.
E foi na cozinha, Flávia disse ao cara de vermelho:
- Depois desse atropelamento eu vou embora!
Atônito ele chegou mais perto dela:
- Você estava ouvindo o que eu disse!? Querida vai embora logo! Lucile!
Ele chamava uma negra muito bonita do outro lado da sala. Lucile foi até o som, parecia concentrada, após um toque a música parou.
Ivan gritou da cozinha:
- Desculpe, parece que a energia desta casa é uma bosta.
Quando o som voltou começou a tocar She's lost control novamente. E Ivan grita:
- Porra!
Flávia se sentia tonta, o homem de vermelho fala rapidamente:
- Ele vai mexer no rádio primeiro quando voltar, se você for embora logo, talvez não a alcance.
Apavorada pela urgência das palavras, Flávia tentou levantar mas suas pernas não responderam.
- Me ajudem!
Ela disse para todos na sala, os rostos consternados só observavam.
- Pobre coitada!  Acho que você não entendeu querida, estamos tentando ajudar como podemos.
E um momento depois Ivan já estava sobre ela, as mãos em seu pescoço invencíveis. Tudo se fechava naqueles segundos finais durante a violação e o estrangulamento. Flávia soltou um baixo pedido de socorro.
Em resposta, o rosto suado de Ivan:
- Estamos sós aqui, doze! Só nós!
Perdendo a vida, Flávia vê as pessoas da sala perdendo as formas.
Foi depositada embaixo do assoalho ao lado de um esqueleto com camisa vermelha.

Era o número onze.



Extras e referências:

1 - Joy Division, banda liderada por Ian Curtis, expoente do pós-punk com flertes ao gótico. She's lost control representa a cama de gato com a protagonista.



domingo, 10 de dezembro de 2017

Diga mamãe





                              “Opus destruit hominem”


Eu odeio o seu mundo.
Vocês adoram se sentar em suas salas, fechados em cubículos e maquinando contra todos. Claramente engordando a cada segundo com suas idas cada vez mais frequentes a restaurantes e aos fast food enquanto alguns de seus subordinados nem trazem algo pra almoçar.
Adoram quando eles entram no seu “salão sagrado” mendigando algo que pode ajuda-los e vocês podem olhar de cima, sentados em suas cadeiras confortáveis.
Raramente me perguntam sobre meu filho, raramente perguntam se estou bem.
Fingem que a empresa possui valores e preenchem um mural com sua questionável moral. Seu código de conduta é um disfarce para a livre delação e outras práticas detestáveis. Aqui se você pisa fora de um dos parâmetros é traído sem pestanejar.
Devo dizer, nos quase nove anos nessa divisão do purgatório me tornei mais falso, mais amoral e mais cruel do que alguém que não seguiu essa carreira. Quanto mais alto o escalão nessa máquina, mais distante dos outros seres ficamos.
Eu sei por que estou aqui.
Você iria apontar o dedo na minha cara e enfiar goela abaixo que minhas atitudes não condizem com a firma. Na verdade, eu quero falar e você vai ouvir tudo. Tire a mão do telefone! Nenhum segurança deste monte de merda fodida chegará a tempo de te salvar.