Citações

"Escabroso, delirante e assustador! Perfeito!" Por Drauzio Marqezini em 12/04/2012 no site Recanto das Letras.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Alva




      "O nosso maior medo é reconhecer como somos de verdade"


 - Que tal Alva?
 A escolha do nome foi difícil, não era um bebê que estava a caminho. Mas era de vital importância um nome de comum acordo ao casal.
 Irina ouviu a sugestão de Lúcio e concordou com a cabeça.
 Ele riu.
 - Será Alva então!
 E voltaram aos beijos.


 Irina e Lúcio eram amigos de longa data. Ela se casou e Lúcio seguiu quebrando a cabeça. A mãe dele sempre dizia:
 - Não arruma mulher casada! Lembra dos problemas que conseguiu.
 Se referia a um caso antigo de Lúcio, uma tal de Joana. Mas foi por infelicidade que bastou Irina casar para Lúcio descobrir que a amava.
 Os amigos se tornaram amantes, faziam de tudo para estar juntos. Secretamente sempre se encontravam e construíam planos.
 - Estaremos juntos de verdade logo.
 Irina queria se divorciar e ficar com Lúcio. Encontravam duas barreiras que atrapalhavam seus planos.
 Uma era o marido de Irina, outra a mãe de Lúcio. Queriam acertar as coisas de modo rápido.
 Estavam "namorando" por dois meses quando tiveram a ideia.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Ser como eles





 Do alto do prédio sede da empresa químico-farmacêutica¹ o homem olha.


 Os tons mudam da raiz ao topo, lá em cima o predominante cinza².
 Ele se serve da bebida na mesa e olha pela grande janela aberta do arranha-céu. Divaga com o copo na mão, olha transtornado para baixo.


 - Eu queria ser como eles.


 - Daqui de cima parecem minúsculas formigas operárias que trabalham para senhores como eu. Suas vidas possuem regras simples: colocar o pão na mesa, reunir pessoas queridas, diversões dentro dos limites monetários, amar.  Alheios a minha presença. Eles me olham nos jornais como notícia momentânea. Sou um assunto fraco nas conversas. Facilmente esquecido.


 Vai até a mesa e serve mais bebida. Volta a olhar o abismo.


 - Eu sou o desvio de caminho de suas vidas básicas. Com única decisão posso esmagar milhares de futuros, milhares de sonhos dos que estão lá embaixo. Crio crises em suas cadeias simples. Posso alimentar os males de toda uma geração. Poder com uma decisão.


 Ele sorri. O rosto rapidamente se contrai amargo.


 - Sobra somente a satisfação destrutiva para quem está no topo. Criamos corporações e empresas gigantescas, movemos a vida das formigas. Com o dinheiro-alimento, movem suas vidas transformando. Multiplicando-se. Enchendo as ruas e alavancando-me a prédios maiores. Fico cada vez mais alto, cada vez mais distante. Para me lembrar sempre que não sou como eles.


 Deposita o copo na mesa, vai novamente até a janela. Amargurado.


 - Contentam-se com pouco; abrem seus melhores sorrisos com beijos...


 Em tom mais alto:


 - Eu conheci o mundo inteiro! Eles se importam com a viagem que fizeram ao parente de outra cidade, tenho dinheiro para forrar minha casa! Eles só querem que sobre o suficiente para pagar as contas.


 Coloca as mãos nos bolsos, olha triste o vazio.


 - Riem; aproveitam a curta vida. Interagem expondo minha fragilidade. Eu sou um homem poderoso.


 Retira um cigarro do bolso e o coloca na boca. Faz menção de acendê-lo com o isqueiro. Joga o cigarro pela janela. Apoia a mão na beirada.


 - O abismo é aqui; não lá embaixo. As esperanças acabam quando se está tão alto. O solo é a segurança, ele te faz lembrar que você pertence a algo.


 Ele chora leve.


 - Vidas notáveis. Pessoas que eu adoraria conhecer, sujeitos que se unem por causas. Quando nascemos a vida nos invade com cheiros, com sons, com visões para nos ajudar a compreender seu propósito. Isso não se pode perder durante o tempo, quanto mais distanciamos menos vivemos. O abismo de cada um deles é onde estou. É onde a humanidade acaba.


 Joga o maço de cigarros lá embaixo.


 - Meus amigos de fachada são como eu. As pessoas somente se aproximam de alguém nesta posição quando querem algo.


 O vento açoita os cabelos.


 - Ela me abriu os olhos quando foi embora. Foi viver como eles e ainda sinto o calor de seu beijo de despedida. Disse que eu estava cada vez mais frio. Já se passaram dez anos e o calor do beijo permanece em meus lábios.


 Toca os lábios relembrando.


 - Já é tarde demais para mim, a distância é grande demais. Há quanto tempo não sinto o amor verdadeiro de alguém? Há quanto tempo não se importam verdadeiramente comigo? Há quanto tempo não me importo com alguém?


 Toca a beirada novamente.


 - É tarde. Não tenho tempo para encurtar a distância aos poucos, quero tudo ou nada! Eu queria ser como eles...


 Chora.


 - Devo alcançá-los, abraçá-los.


 Desajeitado sobe ao parapeito.


 - Abraçá-los. Devo alcançá-los, me misturar a eles.


 O homem salta.

 Mistura-se a multidão pasma, as sirenes tocam.







"Conto muito foda! É triste, é intenso, é real!"
Carla Garcia, professora, comentário postado em 15/06/2009.


Extras e referências:

1 - Xemox, complexo químico inspirada em uma fábrica que joga uma nuvem pútrida em uma cidade do interior de SP. A Xemox assombra vários contos do autor, exemplos: O único, Quando a esmola é demais.

2 - Novamente a cor cinza retrata algum sentimento negativo assim como em A maquete.