Citações

"Escabroso, delirante e assustador! Perfeito!" Por Drauzio Marqezini em 12/04/2012 no site Recanto das Letras.

sábado, 18 de março de 2017

Óculos novos




1 - Fardo


 Eu sofri um acidente quando era criança; meu irmão me empurrou de uma árvore.
 Parece que você cai em câmera lenta.
 Eu vi aquele sorriso sombrio pintado na cara dele. Podia ter me esquivado mas o desgraçado era meu irmão.
 E o mundo lhe diz para confiar na sua família.
 Fora o susto, não tive tempo para sentir dor. A pancada no solo atingiu a nuca e fiquei desacordado.
 Eu acordei no hospital com a voz doce de uma enfermeira. Quando abri os olhos comecei a chorar.
 O mundo havia ficado turvo.


 O médico tentou ser gentil:
 - Aguinaldo, você vai ter de usar óculos. Isso é legal... te torna diferente.
 Tudo que um garoto não quer é ser diferente. O diferente carrega zombarias e apelidos.
 A maior parte disso veio do meu irmão.
 Estava sempre radiante a me azucrinar. Confiante sempre, não levou nem uma palmada pelo que fez comigo.


 Sua felicidade durou pouco.
 Fomos a uma festa de aniversário, após apagar as velas o aniversariante chamou os amigos para andar de bicicleta.
 Meu irmão rechaçou meu pedido de acompanhá-los:
 - O quatro-olhos fica aqui! Se nos seguir leva porrada.


 Foram apanhados por um caminhão não muito longe dali¹, meu irmão morreu na hora.
 O enterro foi triste.
 Posso te dizer que perdoei meu irmão. Ele era só um moleque idiota.
 Responsável direto por eu carregar o fardo em cima do nariz.



 2 - A coleção


 Durante os anos, os graus foram aumentando. E a coleção de óculos velhos crescendo. Por incrível que pareça isso não me fez enxergar melhor as pessoas.
 E a adolescência passou.
 No meu amadurecimento tive algumas decepções, a maioria causadas por eu mesmo. A razão de escrever estas folhas foi a sequência de revelações nos últimos anos.


 Neste ponto, preciso falar rapidamente de Aline.
 Eu a conheci seis anos atrás enquanto trabalhava para pagar minha faculdade. As coincidências foram estranhas, ela trabalhava comigo e cursava a mesma instituição.
 A maioria das idéias casavam, e quando discordávamos de certos assuntos havia respeito mútuo. 
 A empatia foi imediata.
 Tivemos os contatos interrompidos pois Aline se casou com seu namorado da época. Largou a faculdade.
 Resumindo...
 Um ano depois ela o largou e moramos juntos. Assim, de cabeça. 
 Foi uma boa época.
 Depois cada um foi morar em seu canto. O amor permanecia o mesmo.


 Aline teve uma idéia mirabolante.
 - Gui, já chega de usar estes óculos. Você precisa mudar...
 E falou sobre a cirurgia à laser. Procedimento típico hoje em dia, fiquei relutante mas acabei cedendo.
 Em comemoração iríamos desfazer minha coleção.
 Ela os jogou no lixo excitada. E cada um deles me fazia recordar dos anos. Deixou para jogar por último meu primeiro par de óculos.
 Tombou no lixo.
 Frágil, indefeso, inútil.
 - E logo você se livra deste também cabeção.
 Me deu um tapinha na testa fazendo tremer as grossas lentes na armação.


 Eu pensava em como minha vida seria sem eles. Você se acostuma com as coisas ruins quando não existe opção, não é?


 Tentei usar lentes de contato por um tempo mas foi desastroso. Elas pareciam com torrões de areia nos meus olhos.


 Uma outra coisa que me deu ainda mais ânimo para o procedimento cirúrgico: nunca mais precisaria ficar trocando de óculos.
 Precisava trocá-los sempre que via as pessoas como imagens distorcidas.


 3 - Angelical


 Data da operação. 
 A médica que iria operar o laser era angelical. E passou calma no momento crucial.
 Me descontraiu com um gracejo:
 - Vai ficar bonito sem óculos Aguinaldo!
 A equipe riu. Eu não podia vê-la direito mas sentia sua presença acolhedora.


 Antes da operação.
 Eu e Aline tivemos uma conversa com a doutora.
 Posso te dizer que gostei de ainda estar usando óculos naquele dia. Era realmente um anjo.
 Desnecessário dizer que Aline ficou com raiva.
 A médica mostrou um detalhe importante do pós-operatório: eu teria de usar óculos de transição. Os decepcionantes óculos novos.
 Minha visão deveria se adaptar a nova condição.


 A cirurgia foi um sucesso, segundo a doutora.


 Os raios de luz queimavam, a cabeça doía.
 - Vai melhorar, eu garanto. Ficará em repouso um pequeno tempo e retornará para pegar seus óculos transitórios.


 4 - Um novo e estranho ângulo


 Tomei o primeiro susto após retirar por um momento as gazes em casa.
 Aline estava bem na minha frente e aquilo não era Aline.
 Era uma subversão de uma viagem de ácido. Pior do que a bad-trip que tive com o LSD uma década atrás.
 Eu me assustei de verdade.
 Após algumas piscadelas o quadro se tornou um pouco melhor.
 - O que foi!?
 Coloquei as gazes rapidamente.
 - Acho que vai demorar um tempo para a visão ficar boa...
 Alguém batia na porta.
 - Tem alguém aí?
 Voz inconfundível do Sequela.


 E neste trecho devo apresentá-lo.
 Abel, vulgo Sequela, um dos meus melhores amigos. O conheci na adolescência.
 Bebemos juntos e frequentamos os mesmos círculos.
 Um verdadeiro irmão.


 Pedi que Aline abrisse a porta. Eu os ouvi saudando-se.
 - É aqui a casa do ceguinho?
 Eu respondi:
 - Não posso te ver mas se continuar falando posso jogar algo em você.
 Se aproximou rindo:
 - E aí "Aguinildo"?
 "Aguinildo" era um apelido sem noção dado pelo Sequela.
 - É verdade que não vai usar óculos nunca mais? Porra velho, isso é bem louco!
 Fazia um tempo em que não via meu amigo, sem trocadilhos.


 Numa manhã Aline me deixou na frente do consultório sem minhas gazes. Tentei conter o susto ao olhar para ela. Me segurei.
 O quadro permanecia de Picasso.
 Beijei aquela coisa e me despedi. Ela não poderia ficar, tinha de resolver umas coisas do trabalho. 
 Caminhei pela entrada com a visão confusa.
 Eu teria de voltar de táxi para casa.


 Mesmo com a visão turva poderia dizer que a doutora irradiava beleza neoclássica
 Ela me deu os óculos transitórios.
 - Talvez os efeitos colaterais diminuam agora.
 Coloquei os óculos e a olhei.
 E agora sim, um lindo Ingres².
 - Doutora, não sei como agradecer o que fez...
 Ficou ainda mais bela.
 - Já está fazendo isso Aguinaldo.
 Eu sorri.
 Precisava dizer a Aline que tudo estava certo. Coisas do amor.


 Só que a viagem para casa foi horrível.


 5 - Desviando os caminhos


 A rua era a mesma em seus detalhes. Extasiado via as placas, os carros, os postes com uma nitidez incrível.
 Estava feliz como um garoto andando pela calçada. Eu olhava outdoors, semáforos.


 E ao olhar para frente veio outro susto. 
 Ele vinha na minha direção, me olhava fixo. O homem tinha riscos pretos nas rugas que dançavam em sua cara.
 Saltei para o lado e o deixei passar.
 Ao olhar para trás vi o homem abordar um senhor e assaltá-lo. O senhor apanhou muito.
 O homem se foi, fui ajudar o idoso. No rosto dele brilhavam luzes em sucessão de flashes.
 E eu ainda pensava em efeitos colaterais.


 Tudo ficou mais bizarro quando juntaram pessoas para ver.
 Eram humanos mas possuíam rostos com cores que mudavam. Eu os sentia mais frios, mais quentes.


 Uma criança de face azul-clara mudava para o amarelo.
 Uma mãe com o filho no colo ocultava o rosto branco do bebê em seus ombros. E olhava tudo com um rosto que era de um laranja rapidamente acentuado, uma aura a unia a criança.
 - Você se machucou também?
 Perguntava uma idosa de rosto branco-azulado. Eu estava sentado no chão, assustado.
 Procurei olhar para baixo, dois homens me levantaram fazendo-me encarar o grupo de pessoas.


 Eles tinham uma tonalidade coesa. Alaranjados, azuis, brancos.
 Então vi o garoto, ele possuía um celular nas mãos. Fechou o aparelho quando percebeu que eu o olhava.
 Tinha um sorriso sombrio pintado na cara. Como meu irmão.
 - Está se divertindo? Tirando fotos? Este senhor poderia ser o seu avô...
 O rosto do menino ia ficando amarelo, o nariz e a boca alongavam-se. Então entendi... ele estava com medo.
 As tonalidades dos outros ficaram levemente amareladas. Então surgiram um, dois, três vermelhos.
 - Tá louco? Deixa o moleque em paz!
 Era raiva.
 Sai dali rápido, olhava para o chão temendo novas surpresas.


 Encontrei um orelhão e liguei para Aline e disse que estaria na casa dela. Era mais próximo.
 Ela me disse que só poderia chegar as cinco.
 Eram dez da manhã.


 Passei a tarde olhando pela janela da casa de Aline, estremecendo ao ver cores nos rostos que passavam. Algumas faces deformadas.
 Cheguei a pegar o telefone para ligar para o consultório mas desisti.
 Pensei que iam me achar um maluco.
 Crianças com rugas negras perseguiam um gato.
 Uma senhora lamuriava-se com outra. Em seu rosto, um rosa envelhecido de saudade. 
 Do outro lado da rua, uma adolescente rabiscava um caderno na escada da casa. Um tom roxo banhava a testa e as bochechas. Estava fria.
 Um garotinho conseguia fazer a capuxeta subir correndo pela rua. branco, alternado azul. Irradiava calor.
 Seu Lucas, um dos simpáticos vizinhos, levava o lixo para rua. Me viu na janela e acenou.
 Quase despenquei da cadeira... as rugas negras que balançavam no rosto dele eram asquerosas.
 Esbarrei na mesa ao me levantar e os óculos caíram no chão. Pensei que havia encontrado o culpado.


 Achava que as coisas estavam assim pelos óculos.


 6 - Ajustes


 Aline me encontrou com os olhos cobertos. comecei a contar para ela tentando parecer calmo.
 - Você pirou Aguinaldo? Que maluquice é essa?
 Minuciosamente descrevi o que ocorreu após a saída do consultório.
 - Mas... após a operação você viu algo?
 Contei como a vi após retirar as gazes a primeira vez.
 Ela riu.
 - Você acha que virei um monstro? Acha que vê pessoas com rostos mudando de cor, de forma? Imagino como ficaria confuso se visse um clubber cruzar a rua. Há há há.
 Fiquei envergonhado, duvidei da minha sanidade. Ela me deu um soquinho no ombro.
 - Devem ser efeitos colaterais da operação Aguinaldo. O mundo continua do mesmo jeito de sempre.
 Devia ser verdade dela. Aline me amava e não mentiria para mim.
 E pensar que antes da conversa eu matutava que aquela não era Aline.


 Gritaram de fora:
 - Aline!
 Aline respondeu rápido:
 - Estou aqui com o Aguinaldo. Já vou...
 Foi abrir a porta. Em poucos momentos o homem entrou na casa.
 Era o Sequela.
 O que ele fazia ali?
 - O que você faz aqui Sequela?
 Ele levou alguns segundos para responder:
 - Eu... hum, estava passando e resolvi perguntar para a Aline se você estava bem.
 Questionei:
 - Por quê não ligou?
 - Eu só estava preocupado com você. Aline, tem alguma coisa pra beber aqui?
 Desconversou.


 Enquanto se dirigiam para a cozinha eu retirei minhas gazes.
 Eu precisava vê-los.
 Fui devagar até a cozinha, sem os óculos eu enxergava tudo a minha volta com perfeição.
 Eles cochichavam perto da geladeira.


 Se eu me baseasse somente naquela visão, diria que o amor não existe.
 O ser Sequela tinha o rosto alongado como um roedor, era de uma amarelo podre.
 O ser Aline tinha a face escamada como um réptil, possuía algumas rugas negras dançando na face.
 Deles flutuava uma aura nojenta de perfídia. Uma névoa velha que unia os dois.
 Uma manta de traição.
 Pasmo, pensava como ratos e cobras podiam fornicar?
 Seus sentimentos sujos os deformavam. Me enganavam há quantos anos?
 A mulher que eu amava, o amigo que eu respeitava.
 Eu os via perfeitamente em sua sordidez.


 E perfeitamente compreendi tudo.
 Aquilo era meu. Por direito!
 Eu podia enxergar as pessoas de verdade.
 O meu irmão me retardou jogando-me da árvore. Talvez ele tenha percebido que vi sua intenção antes de me arremessar.
 Os óculos ocultavam minha verdadeira visão.
 Eu devia agradecer aquela serpente pela idéia da operação à laser.
 Nunca gostei de usar óculos. Nunca.


 - Eu já vo-vou indo...
 Sequela me pegou observando-os. Ele viu meu olhar e ficou ainda mais amarelo.
 Foi embora rápido, desde aquele dia não o vi mais. Nunca mais.
 Fiquei ali com Aline.
 - Há quanto tempo Aline?
 Ela, a víbora, sorriu.
 - O quê?
 Eu saltei sobre ela e soquei sua cara.
 - Você está louco!
 Gritava de nariz partido. A segurei pelo pescoço.
 Ela ficou gritando que eu estava maluco por um bom tempo.
 Atirei a cobra pela escada do porão.
 Morreu.


 Falar com a polícia e com os médicos foi fácil.
 Ia mudando minha estória enquanto contava ao gosto dos fregueses.
 Rostos em tom verde confirmavam minha tragédia.


 Fiquei um tempo sozinho, achava que tudo era uma merda. Voltei a atender meus pacientes, me tornei um concorrido psicólogo.
 Meus olhos me ajudavam horrores.


 Andando pela rua coletava cores e deformidades. Enquadrava tudo numa lista mental de sentimentos.


 E procuro pelo Sequela, vou encontrá-lo. O amarelo covarde é destaque na multidão.


 Certa vez,bebendo com um amigo psicólogo deformado,fui questionado:
 - Em anos de trabalho com isso, você acredita em pessoas boas e puras de verdade?
 Me veio a mente a doutora que salvou minha habilidade.


 Eu fui atrás dela. Permanecia linda, radiante. Um perfeito Ingres.
 Nunca mais a larguei.


 Nos casamos em pouco tempo. 
 Espero sinceramente que eu não acorde um dia ao lado de um réptil.
 Até agora ela não mudou. Eu te digo, ninguém nunca mais vai me foder.
 As rugas negras que dançam em meu rosto no espelho não me deixam mentir.
 E mais... moramos no oitavo andar.
 Uma bela queda.




Publicado no site Recanto das Letras em 15/11/2009.





Extras e referências:

1 - Referência ao acidente relatado no conto A sina.

2 - 
 Ingres

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