“A melancolia da paixão arrebatadora é o sentimento de
existência efêmera e urgente”
1 – O parlamento da chuva
Foi durante o outono.
As montagens dele eram excepcionais, um imenso sucesso de
crítica e público. Todos queriam um pedaço de Raul, o cultuado Raul¹.
Tinha lenda de uma personalidade complexa, metódica, repleta
de contornos míticos. Era cheio de manias e tiques, diziam que era versado em
diversas áreas.
Quando consegui o papel em sua adaptação para o teatro de
Pensamento Atropelado sabia que era a chance da minha vida.
Imagine só uma atriz fresca prestes a estrear trabalhando
com ele, um bilhete de loteria sorteado. Nos primeiros dias a ansiedade para
conhecer o diretor quase me consumiu. Para agravar a situação ele tinha
aplicado um de seus habituais sumiços.
Duravam sempre uma semana.
Então esperei os dias, mordendo os lábios, para ver a mente
corajosa de Empalando Freiras Virgens.
Começou uma chuva forte numa tarde e eis que surge ensopado
nas portas do teatro. Apolíneo e dionisíaco em si, pediu enquanto mastigava
suas balas de goma.
- Podem me encontrar lá fora?
Boquiaberto, o elenco acompanhou a força de sua figura e
fomos de encontro ao brilho dos raios. Em poucos segundos todos pareciam que
tinham saído do mar. Alguns rostos demonstravam raiva e descontentamento, Raul
sentou-se ao meio fio e com sua voz grave e a risada característica solicitou:
- Sentem-se comigo, apreciem a chuva!
Ele estava ali em seu bruto, um vanguardista brilhando na
rua encharcada, naquele momento todos os presentes sorriram olhando o criador,
que sentia milhares de gotas como abraços calorosos.
Fizemos um círculo na calçada e apreciamos a chuva, apreciamos
nossas pessoas, apreciamos a arte.
E dali em diante torcíamos para que chovesse para mais um
parlamento da chuva.
Natalia Gomes, atriz revelação vencedora do prêmio
Esplendor.